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Ano letivo escolar 2020 e a exposição das fragilidades do regime de colaboração

Prof. Renê Silva/ Pedagogo, Mestre em Educação pela UESB

Estamos chegando a 8 meses dos efeitos da pandemia da COVID-19 na sociedade brasileira. Mais especificamente na Educação, são 8 meses sem aulas presenciais na grande maioria dos municípios e estados brasileiros. Na Bahia, a rede estadual até o momento optou por não realizar e contabilizar atividades remotas como carga horária para o ano letivo 2020, e por outro lado, um número considerável de municípios tem se debruçado no desenvolvimento destas atividades remotas com a possibilidade de cômputo de pelo menos parte como carga horária letiva.

De março para cá, foram inúmeras normativas e documentos publicados com “orientações” para o trabalho educacional neste contexto de pandemia. Com a suspensão das aulas presenciais para atender as orientações dos órgãos de saúde e vigilância sanitária, no sentido de evitar aglomerações, e assim, consequentemente diminuir as possibilidades de proliferação da COVID-19, começou um intenso debate sobre a importância das escolas manterem o vínculo com os estudantes e suas famílias, através de sugestões de  rotinas de estudos e desenvolvimento de atividades que pudessem inclusive, de alguma forma, fomentar nas famílias um melhor convívio durante este recolhimento social.

Quando a gestão da educação, iniciou-se a preocupação sobre se estas atividades realizadas seriam ou não computadas para efeito de contabilização de carga horária e dias letivos. As discussões perpassaram sobre o § 4º do Art. 32 da Lei 9.394/96, que diz que “O ensino fundamental será presencial, sendo o ensino a distância utilizado como complementação da aprendizagem ou em situações emergenciais.” Já para Educação Infantil, não há previsão legal para uso do ensino a distância.

A partir daí, tivemos normativas do Conselho Nacional de Educação e respectivamente dos Conselhos Estaduais, publicação de materiais com orientações de entidades diversas como a União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime), Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed), União Nacional dos Conselhos Municipais de Educação (Uncme), Fóruns de Educação e diversas entidades do terceiro setor, além de órgãos dos próprios governos. Não vou aqui retomar pontos destes diversos documentos, que podem ser acessados facilmente por qualquer pessoa nos sites institucionais.

Quero de maneira mais propositiva, abordar dois pontos deste contexto:  O primeiro é sobre a validação ou não no ano letivo 2020 e a retomada ou não das aulas presenciais, e o segundo ponto sobre as fragilidades que se apresentam para o Regime de Colaboração.

 

  1. Validação ou não do ano letivo 2020 e retomada ou não das aulas presenciais

 

De início cabe aqui sugerir em caráter indispensável, a leitura Parecer CNE/CP Nº: 9/2020 de 08 de junho de 2020 que faz o reexame do Parecer CNE/CP nº 5/2020, que tratou da reorganização do Calendário Escolar e da possibilidade de cômputo de atividades não presenciais para fins de cumprimento da carga horária mínima anual, em razão da Pandemia da COVID-19. Este parecer aponta três possibilidades para reorganização do calendário escolar nas redes e sistemas de ensino: 1)a reposição da carga horária de forma presencial ao fim do período de emergência; 2) a realização de atividades pedagógicas não presenciais (mediadas ou não por tecnologias digitais de informação e comunicação) enquanto persistirem restrições sanitárias para presença de estudantes nos ambientes escolares, garantindo ainda os demais dias letivos mínimos anuais/semestrais previstos no decurso; 3) e a ampliação da carga horária diária com a realização de atividades pedagógicas não presenciais (mediadas ou não por tecnologias digitais de informação e comunicação) concomitante ao período das aulas presenciais, quando do retorno às atividades.

Os subsídios apontados no parecer nos abrem várias possibilidades quanto a reorganização do calendário escolar, incluindo “reordenar a trajetória escolar reunindo em continuum o que deveria ter sido cumprido no ano letivo de 2020 com o ano subsequente”. Sem dúvidas, este reordenamento do cumprimento do ano letivo 2020 com o ano de 2021 é a alternativa mais prudente diante do tempo que ainda nos resta para término do ano de 2020. Não há mais possibilidades para cumprimento da carga horária letiva mínima exigida pela legislação ainda no ano de 2020.

Diante de todos os esforços que inúmeros municípios, escolas e professores tem realizado para desenvolver dentro das possibilidades atividades remotas, sejam de manutenção de rotinas de aprendizagens ou de vínculos, é até um desrespeito falar em não validação do ano letivo 2020. Claro, estou falando daqueles que se mobilizaram e mantiveram o desenvolvimento de atividades.

Quem acompanha e vivencia todo esse movimento que tem sido de grandes desafios, mas também de inúmeras aprendizagens para educadores, estudantes e familiares, encontra experiências e relatos extremamente valorosos, que superam qualquer perspectiva de educação conteudista e caminha para expressões efetivas de uma educação humanizadora. Todo esse movimento não pode de forma alguma não ser considerado como educativo.

O que não podemos de forma alguma, neste processo de reorganização do calendário escolar, numa perspectiva de continuidade 2020/2021, é deixar de reconhecer que muitos estudantes ficaram à margem deste processo de atividades remotas, e que com base nessa situação de negação de direito, não podem ser penalizados pela falta de condições da estrutura de atendimento educacional. Por isso, que o monitoramento nominal da situação de cada estudante é indispensável para se buscar estratégias diferenciadas que garantam aos estudantes que mais precisam um verdadeiro apoio, oportunidades outras que possam vir a garantir o direito de aprendizagem negado até então. Entendo que, mesmo as atividades remotas desenvolvidas, não podem ser entendidas como de ensino, por diversos fatores inerentes a um processo efetivo de ensino-aprendizagem, que não foram garantidos com o distanciamento social.

Desde a suspensão das aulas presenciais, com o aprofundamento das discussões sobre o desenvolvimento ou não de atividades remotas para cômputo de carga horária e dias letivos e suas consequentes dificuldades dada as desigualdades sociais que vivenciamos, que o ponto de maior debate tem sido sobre quando as aulas presenciais podem ser retomadas.

As discussões em torno de uma possível previsibilidade de retorno das aulas presenciais, soam quase que como um grito de desespero de um sistema educacional desestruturado, que viu suas mazelas serem mais ainda expostas com as consequências da pandemia da COVID-19. O retorno das aulas presenciais se tornou quase que uma obsessão de boa parte dos gestores públicos em educação, que se viram encurralados diante das fragilidades financeiras, estruturais e técnicas para manutenção do direito de acesso à educação.

Ficou evidente uma incapacidade grande de se buscar de alternativas diante de um não tão breve retorno de aulas presenciais. O que fazer se as aulas presenciais não puderem voltar em um período breve? Parece que a única resposta de muitos gestores era apenas torcer para que as aulas pudessem voltar logo, e seguir no planejamento de um possível retorno. Poucos gestores tiveram a iniciativas de pensar alternativas que pudessem diminuir a desigualdade social e educacional na promoção de atividades remotas, como por exemplo com o investimento na compra de equipamentos para estudantes, acesso a conectividade e formação para os professores sobre uso de recursos e ferramentas digitais.

Eis que chegamos em uma situação insustentável de ficar apenas aguardando e planejando um possível retorno. O ano de 2020 está acabando, estamos chegando a 8 meses sem aulas presenciais, com o mundo começando a viver uma segunda onda de casos da COVID-19, e com previsão de vacinação em massa a partir do segundo ou terceiro trimestre de 2021. E aí, vamos ficar planejando o retorno até lá?

Não, de forma alguma, vamos agir, e aí começam as fragilidades do Regime de Colaboração.

 

  1. Fragilidades do Regime de Colaboração

 

Primeiramente, é importante desfazer a banalização que temos vivenciado do termo Regime de Colaboração, reduzindo este a realização de reuniões com representação de entes federados e muitas vezes com participação de instituições do terceiro setor.

Regime de Colaboração é um instituto jurídico previsto no artigo 211 da Constituição Federal e 8º da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), onde União, estados e municípios se organizam para solucionar problemas comuns ou estimular e apoiar implementação de políticas. A efetivação do Regime de Colaboração requer um trabalho articulado, coordenado e institucionalizado entre os entes federados, no caso da educação, compreendo que existem responsabilidades conjuntas para garantir o direito à Educação.

Não dá para se falar em Regime de Colaboração com entidades do terceiro setor. Pode-se até falar em colaboração, mas jamais em Regime de Colaboração, que é exclusivo da relação entre os entes federados.

Neste sentido, o papel da União estabelecido pelo § 1º do Art. 8º da LDB é de “coordenação da política nacional de educação, articulando os diferentes níveis e sistemas e exercendo função normativa, redistributiva e supletiva em relação às demais instâncias educacionais.” Aqui reside a primeira e principal fragilidade do Regime de Colaboração neste contexto que estamos vivenciando de indefinição sobre a finalização ou replanejamento do ano letivo 2020. A União não tem exercido seu papel de “coordenação da política educacional”, e o pior, com sua ausência coordenativa, temos visto o terceiro setor assumindo este papel em detrimento até das responsabilidades dos demais entres federados.

Quando vemos o Conselho Nacional de Educação, realizar Lives para comunicar suas orientações sobre o atual contexto, tendo a coordenação desta atividade pelo movimento Todos pela Educação, acende um sinal não de alerta, mas vermelho de muita preocupação quanto ao atual cenário de desorientação da gestão da educação pública brasileira.

Isso reflete na gestão de muitos estados e municípios, que perdidos diante dos inesperados desafios impostos para a educação pelo contexto da pandemia, estão sendo bombardeados por “soluções e receitas orientadoras” de instituições do terceiro setor. Com a incapacidade técnica da estrutura pública, que parece paralisada sem conseguir pensar estratégias, as “facilidades” do terceiro setor ocupam espaços com o aval dos gestores públicos, que se apegam aos produtos ofertados como forma de querer mostrar trabalho. Uma enxurrada de cursos, lives, manuais orientadores, plataformas digitais, que sem nenhuma coordenação ou articulação com o planejamento educacional das redes de ensino, chegam as escolas e educadores criando uma sobrecarga imensa de atividades desconexas para dar conta.

No caso da Bahia, vemos uma tentativa importante de articulação e diálogo entre as representações dos entes federados na busca de alternativas para o atual cenário. No entanto, esta tentativa parece mais uma ação retórica do que propositiva no sentido de efetivação de ações colaborativas na perspectiva do Regime de Colaboração.

Enquanto a rede estadual da Bahia não tem realizado atividades remotas para cômputo de carga horária e/ou dias letivos, muitas redes municipais têm trabalhado com a perspectiva deste cômputo. Mesmo com as possibilidades que as normativas do Conselho Nacional de Educação abrem de trabalho neste contexto, os Conselhos Municipais de Educação se veem com dificuldades de normatizarem as ações que os municípios têm tentado promover.

Rede Estadual caminha para um lado e municípios caminham para outros lados. Claro que, não cabe aqui juízo de valor sobre que está certo ou errado, mas apenas uma reflexão sobre a diversidade deste contexto desconexo de articulação entre os entes federados.

Sem dúvidas, para a educação pública baiana, o caminho definido para a rede estadual de antecipar as férias aos profissionais da educação no mês de novembro, sinalizando uma intencionalidade de aproveitar o mês de janeiro de 2021 como letivo, causou um grande desconforto para os municípios, pois apesar da autonomia que é garantida para cada ente federado, existem inúmeras ações colaborativas entre Estado e Municípios que garantem o funcionamento harmônico da educação em ambas redes de ensino. Gostaria de enumerar algumas delas, ainda mais diante da especificidade deste ano, com as eleições municipais.

O primeiro aspecto que eu gostaria de pontuar não vi ainda nenhuma abordagem, e acredito ser o principal. Como dissemos anteriormente, cabe a União a “coordenação da política nacional”. Bom, estamos órfãos de coordenação, e há muita discussão sem preocupação com um certo embasamento legal, de que Estados e Municípios têm autonomia para organização dos seus calendários escolares. Em parte, é isso mesmo, mas só em parte. Sabemos que a autonomia é exercida tendo como base a legislação vigente. Imaginemos, se sob o pretexto do exercício da autonomia, cada ente federado resolver criar seu próprio calendário escolar sem olhar os limites da Lei. Ai um município decide que vai concluir o ano letivo 2020 em janeiro de 2021. Outro município decide que vai concluir em junho de 2021. A rede estadual em abril de 2021. Pergunto, como fica a movimentação dos alunos que migram de uma rede para a outra? Outra questão, a União é quem coordena o censo escolar, e o repasse dos recursos do Fundeb e de outros programas é com base na matrícula de alunos. Se cada ente federado tiver calendário diferenciado, com prazos bem distintos, como ficarão a coordenação do repasse do Fundeb, a realização do censo escolar e o repasse de recursos dos diversos programas? Não vi nenhum debate sobre isso ainda.

Uma outra questão é sobre a concessão de férias para os profissionais da educação. No caso dos municípios, em muitos deles os professores estão trabalhando, e nunca trabalharam tanto. Como muitas redes de ensino estão com o ano letivo 2020 em curso, com o desenvolvimento de atividades remotas, ficam impossibilitadas de conceder férias agora. Como ficam os professores que atuam tanto na rede estadual como municipal? Não poderão aproveitar as férias, pois no momento que estiverem de férias em um ente, estarão trabalhando em outro. Contudo, claro que o Estado não tem obrigação de alinhar férias com os municípios, mas, dentro de uma perspectiva de trabalho colaborativo diante do contexto atual, o bom senso reza que seria importante um diálogo na busca de entendimento e o mínimo de alinhamento.

Outro ponto importante, é que estamos em um ano de eleições municipais, e em todos os municípios, os gestores independentemente de serem reeleitos ou não, precisarão fechar o exercício financeiro. Desta forma, todos os contratos com transporte escolar, fornecedores e de pessoal serão finalizados até 31 de dezembro. Isso impossibilita que se inicie janeiro de 2021 com aulas, sejam presenciais, semipresenciais ou remotas. Por isso, se tornar prudente programar as férias escolares para esse período, é o tempo que a gestão municipal reorganiza a contratação dos diversos serviços. Para os novos gestores, o mês de janeiro é mais estratégico ainda, pois estarão se apropriando da realidade da gestão municipal e organizando as equipes de trabalho.

Estas são situações, que diante do contexto atual precisam ser muito bem dialogadas entre os entes federados, pois sabemos bem das diversas ações colaborativas que Estado e municípios possuem. E, não é possível deixar de fora deste diálogo a União, uma vez que especialmente as ações de financiamento da educação básica são coordenadas pelo Governo Federal.

Em resumo, as fragilidades do Regime de Colaboração estão expostas. E agora?

 

Prof. Renê Silva

Pedagogo, Mestre em Educação pela UESB