Nesta nova prosa, quero trazer algumas reflexões e provocações sobre os desafios que estão colocados para nós, de forma escancarada como consequências da suspenção das aulas presenciais em decorrência das necessárias medidas de distanciamento social impostas pela pandemia da Covid-19. Desafios mais especificamente sobre o pensarfazer pedagógico, sobre a aprendizagem, sobre a autoria do trabalho das professoras e dos professores.
Em meus momentos de troca e compartilhamento de saberes e fazeres com as professoras e professores nas com-versações em diversos municípios nas jornadas e diálogos pedagógicos, tenho sempre começado as reflexões a partir da necessidade de compreender as consequências socioeconômicas e socioeducacionais impostas pela pandemia da Covid-19. Na verdade, antes da pandemia já vivíamos um cenário de piora dos indicadores socioeconômicos, como por exemplo aumento do desemprego, aumento do número de pessoas retornando para a linha da pobreza e da extrema pobreza.
Compreendo que no planejamento das possibilidades educacionais para este contexto, devemos partir da realidade objetiva de nossos estudantes e suas famílias. A educação não pode servir para agravar ainda mais as dificuldades e desafios que as consequências desta pandemia têm gerado. Por outro lado, neste planejamento, temos também que observar quais são as condições objetivas de professores e estudantes realizarem atividades de forma não presencial, principalmente por conta de desafios históricos de precarização das condições e também da formação, sobretudo para o uso de ferramentas e recurso digitais.
Mas, quero me deter em reflexões sobre o pensarfazer pedagógico, onde também enfrentamos desafios históricos, que por vezes ficam secundarizados em nossas discussões, camuflados, ou deixados debaixo do tapete onde ficam assentadas as denúncias sobre as precárias condições de trabalho e de acesso a conectividade e recursos digitais por professores e estudantes.
Enquanto na educação pública, temos uma dificuldade grande de assumirmos nossas fragilidades de forma coletiva, e ficamos em uma transferência, na maioria das vezes cômoda, de responsabilidades, vemos os filhos e filhas daqueles que detém o domínio dos meios de produção, os filhos e filhas daqueles que ganham dinheiro com o trabalho dos outros, continuarem seus estudos nas escolas particulares de ponta, sem discutir sequer minimização de conteúdo.
Entre nós, classe popular e trabalhadora, ficamos ainda discutindo se é correto ou não a professora e/ou o professor usar seu celular para manter contato com os estudantes, como se isso fosse o mais grave de todo esse contexto de aprofundamento das desigualdades socioeducacionais e econômicas. Ainda há quem ache isso uma reivindicação revolucionária.
No ano do centenário de Paulo Freire, mais do que nunca precisamos recuperar a amorosidade no ato de educar. Precisamos de uma vez por todas nos livramos desta compulsão pela quantificação da educação. Por mais que tenhamos ponderado insistentemente a necessidade de prudência, empatia e bom senso no planejamento educacional neste contexto, ainda vemos muitas propostas focadas de maneira insana em computo de carga horária e dias letivos, em detrimento daquilo que é mais importante, a aprendizagem.
Freire já nos dizia que ensinar exige apreensão da realidade, exige criticidade, estética, ética. Não há como pensar em qualquer estratégia de planejamento sem realizar um diagnóstico sério da realidade objetiva que estamos inseridos. Freire nos diz ainda que ensinar exige respeito aos saberes dos educandos, exige reconhecimento e a assunção da identidade cultural. Mais do que nunca, qualquer planejamento educacional neste contexto precisa iniciar com a escuta aos estudantes e seus familiares. Apreender a realidade, não sobre o outro, mas com o outro. Diagnóstico e escuta são estratégias fundamentais para organização e início de qualquer trabalho pedagógico. Isso não é novidade para nós.
Como eu abordei em artigos anteriores, precisamos tomar cuidado com as soluções que se apresentam em embalagens belíssimas através de discursos sedutores. Não podemos cair na armadilha de oferecer menos para quem precisa de mais. Conteúdos essenciais, mínimos, mapas de foco, sites e plataformas que já disponibilizam aquilo que deve ser trabalhado pelas professoras e professores neste contexto precisam ser analisados criticamente.
Quem define currículo é a professora, é o professor, e ponto final. Isso tem que ser inegociável, se quisermos nos manter como atores/autores do nosso pensarfazer educação. Como nos diz o professor Roberto Sidinei Macedo, currículo é “um sistema aberto, relacional, que acolhe o complementarismo com um movimento dialógico necessário para sua relevância socioeducacional”. Estas facilidades apresentadas como soluções quase que mágicas, são os complementarismos, que tem o seu valor, mas precisam ser analisados criticamente.
Cada realidade é uma realidade, e professoras e professores são os responsáveis no fazerpensar pedagógico por elegerem os saberes, os objetivos de aprendizagens que são necessários para o momento atual. Eu tenho fugido da discussão sobre “o que é possível fazer dentro deste contexto”, pois para educação pública parece sempre sobrar “o que é possível”, e se nos entregarmos a isso, “o que é possível” é muito pouco dentro das condições que nos são oferecidas. Historicamente, nós professoras e professores sempre temos feito muito além do que é possível. Tenho dito que, olhando para um diagnóstico qualificado, dando voz a uma escuta verdadeira com os estudantes e seus familiares, precisamos eleger as temáticas que são necessárias para serem trabalhadas neste contexto, e não o que é possível. Das temáticas que emergem da realidade objetiva, olhamos para nossos referenciais curriculares, para o conhecimento historicamente produzido e sistematizado pela humanidade, para a partir dele, podermos significativamente gerar reflexões e aprendizagens que nos permitam atravessar da melhor forma este momento.
Como nos diz Freire, “a leitura do mundo precede a leitura da palavra”. Este é o movimento relacional para o currículo, que se define em cada escola, e não nos gabinetes por iluminados que se propõem a pensar e elaborar módulos homogêneos que ignoram a realidade objetiva.
Como disse anteriormente, os filhos e filhas daqueles que ganham dinheiro com o trabalho dos outros, continuam seus estudos com todo o rigor que as disputas impostas pela competitividade capitalista impõem. Não quero de forma alguma propor para nossas escolas públicas a sobrecarga de conteúdos sem as condições mínimas para o estudo. O que quero é alertar que, precisamos sim trabalhar com saberes eleitos neste contexto, mas eleitos pelas professoras e professores, dentro do seu exercício docente, levando em consideração a realidade objetiva. Sabemos que determinados saberes, precisam de outras condições para o trabalho, mas que estes não sejam deixados de lado, mas retomados quando tivermos as possibilidades e condições objetivas para isso.
Nossos diagnósticos têm mostrado que a maioria dos estudantes não tem acesso ou tem limitação de acesso a conectividade e recursos e ferramentas digitais. Neste cenário, para o trabalho com as aulas não presenciais, as atividades impressas aparecem como a grande alternativa para se chegar à todos os estudantes. O grande desafio ao pensar na organização destas atividades, é justamente pensar em estratégias de interação que permita aos estudantes acesso a orientações e esclarecimento de dúvidas. A questão é que, apesar dos vários esforços de superação, nosso fazer pedagógico ainda é centrado no professor, no instrucionismo, na aula expositiva e aplicação de testes e provas, o que mantem os estudantes com uma dependência muito grande dos professores.
Agora, com a ruptura das aulas presenciais, para realizar as aulas não presenciais, queremos cobrar de uma hora para outra dos nossos estudantes, o exercício de uma autonomia que nunca demos para eles em seu processo de estudo. Alias, poucos eram os momentos de estudo nas aulas presenciais, e muitos os de ensino. Para ilustrar melhor, a grande maioria das nossas escolas, por não saber usar pedagogicamente recursos e ferramentas digitais, proibiam o uso do celular na escolar e/ou sala de aula antes da pandemia, e agora estamos implorando, para que na pandemia, os estudantes façam uso do celular para o estudo. Estamos cobrando algo que nunca vivenciamos na escola. Por isso, vamos com calma, tirando aprendizagens deste contexto.
De certo, quando pudermos retornar as aulas presenciais, precisaremos repensar e muito nossa prática, e com as aprendizagens deste contexto, promovermos um novo momento para as práticas pedagógicas em nossas escolas. Colocar efetivamente em prática os nossos sonhos e utopias. Desde sempre, nos diversos momentos de estudos que tivemos ao longo de nossa trajetória profissional, não foram poucas as reflexões sobre a importância do estudante como sujeito da aprendizagem, como ator do seu processo formativo, sobre a importância da educação escolar sair das quatro paredes da sala de aula, da escola baixar seus muros e se abrir para a comunidade, do uso pedagógico das tecnologias da educação, etc… A pandemia apenas serviu para escancarar o quando nossas discussões teóricas, nossos sonhos e desejos de mudança estão longe da realidade objetiva da nossa educação pública. O bom, é que temos experiências inspiradoras que comprovam que é possível sim uma ruptura com o instrucionismo, com a educação bancária tão denunciada por Freire.
Uma ruptura com esse paradigma instrucionista é mais que necessário. Por isso, no pensafazer pedagógico neste contexto, temos que tomar muito cuidado, com o impulso que de virtualizarmos as práticas instrucionistas tão enraizadas em nossa escola ainda tradicional. Usar as ferramentas e recursos digitais para fortalecer a instrução, com gravação de aulas expositivas por exemplo, ou a elaboração de módulos impressos com questões fragmentadas por componentes curriculares para que os estudantes respondam, seja com a consulta de livros didáticos ou pesquisa em internet, não caminham na direção de uma ruptura. Mas, compreendo que muitas vezes isso acontece, porque é o que fazíamos em nossas escolas presencialmente.
O que quero aqui, não é fazer um juízo de valor, mas chamar as professoras e professores para uma reflexão no sentido de que as maiores dificuldades que estamos enfrentamos na realização das atividades não presenciais, estão relacionadas a dificuldade do exercício da autonomia de estudo por nossos estudantes e dificuldades do uso pedagógico dos recursos e ferramentas digitais por nós professoras e professores e por nossos estudantes.
Neste sentido, mais do que nunca, precisamos fortalecer em cada rede de ensino espaços de diálogo entre as professoras e professores. Para mim, o espaço fundamental para esse diálogo é o da formação continuada. Cada rede precisa formalizar seu programa próprio de formação continuada, que possa retomar estudos sobre metodologias, didática, oportunizar estudos sobre novas estratégias, aprofundamento de estudos de trabalho interdisciplinar, avaliação a serviço da aprendizagem e troca de experiências desenvolvida na própria rede. Sempre digo que no planejamento de um programa de formação continuada, cada rede precisa olhar para suas potencialidades, e envolver seus próprios profissionais como formadores a partir dos seus campos de estudo, pesquisa e de suas experiências.
Claro que um programa de formação continuada deve fazer parte de um projeto maior de educação. A formação continuada por si só não garante mudança, transformação das práticas pedagógicas. Por isso, a formação continuada deve ser sempre vista como um elemento estratégico da organização do trabalho pedagógico, caminhando lado a lado com o planejamento, avaliação e monitoramento.
Ensinar exige consciência do inacabamento, exige reflexão crítica sobre a prática (Freire)…
Renê Silva
Pedagogo, Especialista em Fundamentos Sociais e Políticos da Educação, Mestre em Educação pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia