Itiruçu Online – Aqui Bahia Jornalismo de Qualidade e Responsabilidade Social

ARTIGO : O OCULTO NO DEBATE SOBRE EDUCAÇÃO INTEGRAL

No ano de 2024, o debate central na educação básica pública brasileira, girou especialmente em torno da ampliação da jornada de tempo escolar, sobretudo a partir da Lei nº 14.640/2023 que instituiu o Programa Escola em Tempo Integral. A Lei, através de apoio financeiro, fomentou a criação de novas matrículas em tempo integral nas redes de educação básica.

A Portaria nº 1.495/2023, que dispõe sobre a adesão e a pactuação de metas para a ampliação de matrículas em tempo integral no âmbito do Programa Escola em Tempo Integral, estipulou no seu artigo 6º, que no “ato de pactuação das matrículas, os entes federativos comprometem-se a comprovar a aprovação de sua Política de Educação em Tempo Integral”, sendo que, caso o ente não dispusesse ainda desta Política em vigor, este deveria elaborar e aprovar a respectiva Política até a fase de declaração de matrícula estipulada pelo cronograma do programa.

Neste cenário, a grande maioria das redes públicas de ensino da educação básica não dispunham de Política Local de Educação em Tempo Integral, e houve uma grande correria para essa elaboração e aprovação dentro do primeiro prazo estipulado pelo Ministério da Educação, que foi de 6 de maio de 2024.

Paralelamente a este prazo, dentro do Programa Escola em Tempo Integral, o Ministério da Educação (MEC) firmou parceria com as Universidades Públicas para oferta de Formação Continuada para dirigentes de educação e equipes técnicas de secretarias estaduais e municipais de educação, com objetivo de subsidiar as redes na elaboração da sua Política Local. Contudo, esta formação só teve início efetivo entre fevereiro e março de 2024, com duração de 6 meses, sendo que essa temporalidade destoou do prazo inicial estipulado para que as redes informassem ao MEC a elaboração e aprovação da sua respectiva política.

Mesmo com uma certa flexibilização por parte do MEC informando que as redes que não informassem a elaboração da política até 6 de maio de 2024 não teriam prejuízos quanto aos recursos já recebidos, podendo, portanto, informar a elaboração após esse prazo, muitas redes não quiseram arriscar, e acabaram recorrendo a processos aligeirados de elaboração, muitas vezes sem conseguir garantir uma efetiva participação dos diferentes atores e atrizes educacionais das comunidades escolares. Importante registrar, que com a abertura de uma nova fase de pactuação para o ano de 2025, a Portaria nº 48 de 12 de agosto de 2024 ampliou o prazo para apresentação da Política de Educação Integral para 30 de junho de 2025.

Sem contar, que muitas redes recorreram a contratação de consultorias, que para dar conta da demanda, se utilizaram de modelos prontos, aplicando pequenos ajustes as realidades com que trabalharam. Modelos que muitas vezes entram em contradição com os próprios conceitos e fundamentos defendidos no debate de uma oferta de ampliação da jornada de tempo nas escolas dentro de uma perspectiva de Educação Integral, sobretudo levando em consideração o que está disposto na Portaria nº 2.036/2023.

A partir disso, é que quero entrar naquilo que considero oculto no debate atual sobre Educação Integral, a precarização do trabalho docente e das condições de trabalho. Para mim, esta precarização está imbricada com a fragilidade do financiamento da educação básica pública. Por mais que algumas vozes mais respeitadas no debate da Educação Integral ainda insistam em dizer que a ampliação da matrícula de alunos em tempo integral amplia também os recursos para educação das redes públicas, contínuo na contramão e denunciando que isso não é uma verdade.

E meu argumento para contrapor é muito simples, basta analisar os fatores de ponderação que norteiam o repasse de recursos da maior fonte de financiamento da nossa educação básica pública, que é o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb). Enquanto um estudante que estuda um turno no ensino fundamental anos iniciais tem o fator de ponderação 1 (um), o estudante que estuda dois turnos (tempo integral) tem o fator de ponderação 1,5 (um vírgula cinco), ou seja, a rede em que este aluno em tempo integral está matriculado recebe apenas 50% a mais por este aluno do que se ele estivesse apenas um turno na escola.

Receber 50% a mais por este aluno passar a ser de tempo integral, não significa na prática aumento de recursos. Basta para isso levar em consideração os custos que a rede tem para manter o estudante um turno na escola. Os recursos recebidos com base no fator de ponderação 1 para este estudante de um turno já tem sido em muitas redes insuficientes para os investimentos necessários para garantia de uma dada qualidade desejada de educação. E, para ampliação do tempo deste estudante na escola, 50% a mais no valor aluno ano, pode colocar em risco a qualidade de oferta desta ampliação, sobretudo para as redes que tem se esforçado para promover uma organização curricular e pedagógica que contemple a concepção e as diretrizes de Educação Integral preconizada pela Portaria nº 2.036/2023.
Em tese, o fator de ponderação para matrícula em tempo integral deveria por coerência ser no mínimo 2. Claro que algumas redes/municípios/estados conseguem compensar essa lacuna de recursos oriundos do Fundeb, com recursos de impostos provenientes da atividade econômica local. Só que essa é a realidade de uma pequena parcela das redes/municípios. A maioria dos municípios brasileiros, depende fortemente das transferências constitucionais para manutenção dos serviços públicos ofertados.

Portanto, reitero que a ampliação da matrícula de estudantes em tempo integral não aumenta efetivamente os recursos para educação das redes de ensino. Contudo, no debate sobre Educação Integral, tem sido apresentada e compartilhada várias experiências de sucesso desta ampliação do tempo escolar, sem na maioria das vezes, expor os custos, formas de contratação, remuneração praticada e perfil de formação dos novos profissionais que estão sendo incorporados na proposta.
Sem dúvidas, o compartilhamento de experiências é fundante, pois a ampliação da jornada de tempo escolar é um processo, uma caminhada em constante construção, neste sentido, conhecer e compreender as experiências em curso é importante para o debate sobre as necessidades de aprimoramento das condições necessárias para oferta desta ampliação de tempo verdadeiramente em uma perspectiva de Educação Integral.

Mas, aqui vai uma crítica, que arrisco dizer não será bem compreendida por algumas autoridades do debate da Educação Integral. Na maioria das vezes, as experiências compartilhadas são colocadas como “cases de sucesso”, como modelos a serem seguidos, como resultado de capacidade de gestão de alguns seres iluminados quase que evidenciando o que ouso chamar de meritocracia de gestão, o que tem causado uma sensação para muitos que assistem os relatos, de incompetência em não conseguir também alcançar aqueles mesmos resultados. Limita-se ou reduz o debate a vontade política do gestor, ou capacidade de gerir com eficiência os escassos recursos.
Não quero aqui de forma alguma desmerecer ou descredibilizar as importantes experiências que tem sido compartilhada e que tem sim servido de inspiração para tantas escolas e redes de ensino. O debate sobre a política pública deve sempre partir das experiências em curso e deve cada vez mais ser realizado com os sujeitos que estão no cotidiano da nossa educação pública, no entanto, minha crítica vai para o que denominei acima de meritocracia de gestão. A meu ver, tem faltado um debate mais propositivo a partir das boas experiências que temos tido. Na maioria das vezes, esses espaços de compartilhamento, funcionam mais como espaços de propaganda daquilo que tem sido feito, do que espaços de efetivamente se pensar, problematizar, buscar proposições que permitam fortalecer e avançar no que está sendo feito.

Neste sentido, as experiências acabam se cristalizando como modelos bem-sucedidos, quase sempre de ampliação de jornada do tempo escolar com atividades de contraturno, o que a própria Portaria 2.036/2023 aponta que deve ser superado. Assim, limita-se a pensar naquilo que pode ser feito dentro das precárias condições ofertadas, sobretudo de financiamento, como se o desafio maior fosse de organizar uma matriz curricular que desse conta de atender as condições disponíveis. Via de regra, o que temos visto exaustivamente é a ampliação da jornada escolar a partir de um modelo disciplinar cristalizado, que insiste em prender em uma grade curricular fragmentada com aulas de 50 minutos os diversos saberes, ao invés de avançar para valorização das múltiplas formas e possibilidades de pensar e fazer educação a partir da escola.

Contudo, quando a gente se aproxima da maioria destas experiências, que repito, tem sido sim muito importante, constatamos o quanto temos ainda que avançar para construir uma estrutura que garanta sustentabilidade para uma política efetiva de Educação Integral. Com isso, quero brevemente sinalizar apenas dois pontos:
1- Precarização do trabalho docente – A ampliação da jornada de tempo escolar, requer que as redes de ensino ampliem a oferta de atividades, repensando não apenas o currículo, mas toda a organização do trabalho pedagógico, o que envolve a didática, a gestão, as metodologias, os espaços, a avaliação, a relação e convivência, etc. Repensar estes e outros tantos elementos, impacta também na necessidade de ampliação da equipe, de profissionais da educação que possam se somar a um projeto de educação numa perspectiva de desenvolvimento integral.

Quando se parte para este processo tendo a compreensão de que as atividades pensadas e planejadas para a oferta da educação integral devem incidir sobre as diferentes dimensões constitutivas do desenvolvimento dos sujeitos (cognitiva, física, social, emocional, cultural, política, estética, ética, espiritual, etc.) a partir da mobilização e integração entre diferentes espaços, instituições sociais, tempos educativos e da diversificação das experiências e interações sociais, as redes em sua grande maioria se deparam com dificuldades de profissionais com a formação necessária para contribuir com esse projeto.

Mesmo redes que conseguem dispor de profissionais com a formação desejada, muitas vezes encontram dificuldades quanto aos recursos e formas de contratação para atuação destas pessoas. Quase todas as redes de ensino hoje, possuem Planos de Carreira para os profissionais do magistério ou da educação, que garantem piso salarial e desenvolvimento na carreira. A legislação também é clara quanto aos critérios de ingresso ao serviço público, que precisa ser através de concurso público, sendo as contratações permitidas apenas para situações excepcionais.

Mas, na prática, em muitas redes, o número de contratados acaba sendo equivalente ou até maior do que o número de efetivos, e o que era para ser exceção, vira quase que uma normalidade. Com isso, em muitas redes, a necessidade de mais profissionais para ampliação da jornada de tempo escolar, vem sendo suprida por processos de contratação muitas vezes precarizados. Aí volto a questão do financiamento da educação, quando se parte para o cálculo dos custos necessários para ampliação do quadro de pessoal, chega-se a conclusão de que não dá para desdobrar carga horária de muitos profissionais que já são efetivos por conta do impacto que isso causa na folha de pessoal, uma vez que o profissional do quadro efetivo tem seus direitos garantidos por um Plano de Carreira. Soma-se a isso, o fato já relatado aqui, que a receita da rede pela matrícula do aluno em jornada de tempo integral não dobrar, e representando apenas 50% a mais do que o aluno que estuda em meio período.
Sendo assim, muitas redes partem para processos de contratação, onde o salário a ser pago para estes novos profissionais serão menores do que aquele pago aos profissionais pertencentes ao quadro efetivo. E pior, muitas redes, alteram a nomenclatura destes novos profissionais, que apesar de serem contratados para exercerem a docência, recebem a função de monitor, oficineiro, educador social, etc… para que se justifique o pagamento de valores, muitas vezes, menor do que um salário mínimo, o que muitos nomeiam de bolsa. E, em algumas redes, mesmo com os profissionais do quadro efetivo, para diminuir o impacto na folha de pagamento, a ampliação da carga horária é feita através de aulas extras, para que não incida sobre os valores as demais vantagens contidas em Planos de Carreira.

São malabarismos que são feitos (muitas vezes com auxilio milagroso de consultorias) justamente por conta dos recursos disponíveis ainda serem insuficientes. Destaco novamente, o município só recebe 50% a mais pela matrícula em tempo integral, e acaba tendo que ajustar os custos a receita. Só que, essas questões praticamente não aparecem nos debates atuais sobre Educação Integral. Vemos as fotos, os vídeos encantadores das atividades realizadas, a imagem dos profissionais, mas essas questões ficam ocultas. Como tem sido efetivamente a valorização destes novos profissionais que tanto tem contribuído para fazer a Educação Integral?

Trazer esse debate à tona, é importante para se combater a precarização do trabalho docente que está sendo fortalecido, muitas vezes inconscientemente, através do fomento da ampliação da jornada de tempo escolar. E, precisamos compreender que o conceito de valorização do trabalho docente não envolve apenas salário, mas também carreira, formação e condições de trabalho.

Então cabe perguntar também: como está sendo pensado o acesso a formação para estes novos profissionais que estão adentrando as escolas para exercer a docência sem muitas vezes terem um curso de licenciatura? Se a proposta é que a Educação Integral seja encarada como uma Política de Estado, até quando esses profissionais viveram relação de contratação precarizada sem ter sua carreira pensada pelas redes?

A Política de Educação Integral precisa dialogar com outras políticas, como a Política Nacional de Formação de Professores (PARFOR), e pensar na oferta de formação inicial para estes profissionais que estão adentrando a escola a partir da ampliação da jornada de tempo escolar, e que não possuem curso de licenciatura. Recorro mais uma vez a Portaria nº 2.036/2023 que institui as diretrizes para a ampliação da jornada escolar em tempo integral na perspectiva da educação integral e estabelece ações estratégicas no âmbito do Programa Escola em Tempo Integral, que traz a necessidade de foco na formação ampliada dos educadores/as e preocupação com a valorização profissional.

Neste sentido, um PARFOR Integral é urgente, pois o debate da Educação Integral não pode de forma alguma prescindir de observar o disposto nos artigos 61, 62, 62A e 62B da nossa Lei 9.394/1996 quanto a formação necessária para o exercício da docência.

2 – Condições de trabalho – Apesar deste ponto integrar a valorização profissional, quero abordá-lo de forma mais específica pelo fato dele transcender apenas o interesse dos profissionais da educação e envolver toda a dinâmica de trabalho das redes/escolas e suas comunidades escolares.

Mais uma vez, esse é um ponto que está imbricado com o financiamento da educação. A ampliação da jornada escolar em uma perspectiva integral, observando as diretrizes da Portaria nº 2.036/2023 exige investimentos condizentes com as necessidades de melhorias de infraestrutura, adequação/melhorias/construção de espaços, aquisição de materiais didáticos e pedagógicos, desenvolvimento de projetos e atividades pedagógicas de campo, acesso a bens culturais e esportivos, etc.

Tenho defendido, que a ampliação de recursos deve sobretudo observar o disposto no Artigo 15 da Lei 9.394/1996, fomentando efetivamente progressivos graus de autonomia pedagógica e administrativa e de gestão financeira para as escolas, atrelando o repasse de recursos ao Projeto Político-Pedagógico de cada unidade de ensino. Isso porque, há uma dificuldade de os recursos financeiros chegarem efetivamente ao fazer pedagógico do cotidiano escolar. Muitas das experiências em curso, tem sofrido muito com a falta de condições de trabalho. Muitas vezes faltam materiais básicos para o desenvolvimento das atividades pedagógicas, forçando estudantes, comunidade escolar, profissionais da educação a terem que investir recursos próprios para aquisição de materiais que deveriam ser custeados pelo poder público.
A atual Política de Educação Integral em curso, antecipa um valor aluno para as redes de ensino pactuarem matrículas e fazerem alguns investimentos iniciais para esse atendimento, mas a manutenção das atividades pedagógicas pelas escolas, continuam na dependência da gestão centralizada de recursos por parte das secretarias locais de educação.

Há a necessidade de ampliar, talvez através do Programa Dinheiro Direto na Escola, o repasse de recursos para as escolas com jornada ampliada, aprimorando mecanismos de gestão mais participativos, transparentes e como dito anteriormente, orientados por ações expressas em um Projeto Político-Pedagógico que seja efetivamente expressão de uma construção coletiva.

Ampliando o debate – As reflexões aqui abordadas, longe de serem expressão da verdade, são apenas elementos para ampliar e provocar o aprofundamento das discussões para questões que ainda enxergo como ocultas no debate sobre a Educação Integral. O ano de 2025 marca para a grande parte das redes municipais, o início de novas gestões no campo educacional, e para os que estão se achegando, penso ser importante se apropriar de como tem se dado o processo de ampliação da jornada escolar em sua respectiva rede para poder elaborar um planejamento de ampliação sustentável e com qualidade efetiva. Paralelamente, é importante que sobretudo os dirigentes de educação, fortaleçam o debate do financiamento da educação nos diversos espaços de discussão através de suas instituições representativas. Precisamos urgentemente avançar no debate da implementação das estratégias 20.6, 20.7 e 20.8 da meta 20 da Lei nº 13.005/2014 quanto a regulamentação do Custo Aluno Qualidade (CAQ), para que avancemos efetivamente no aumento de recursos para educação básica pública.

Até lá, só nos resta a solidariedade para com os inúmeros profissionais da educação, que como exemplo, no ano de 2024 tanto se dedicaram para desenvolver importantes atividades para que as redes/escolas pudessem ofertar a ampliação da jornada escolar, e que por conta de processos de contratação precarizados com contratações temporárias e baixa remuneração amargam, enquanto eu termino de escrever essas provocações neste período de férias para os profissionais efetivos, o desemprego, a falta de renda, e a incerteza do seu futuro profissional até que comece o novo ano letivo. Um projeto de Educação Integral não pode de forma alguma estar descolado da luta por ações de valorização profissional e de efetivas condições de trabalho.

Renê Silva, Doutorando em Educação pela Universidade Federal da Bahia. Pedagogo, Especialista em Gestão Educacional, Especialista em Fundamentos Sociais e Políticos da Educação e Mestre em Educação pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. Coordenador Pedagógico da Rede Municipal de Nova Itarana.