Em março de 2022, completamos dois anos do início da pandemia e suspensão das aulas presenciais por conta das necessárias medidas de distanciamento social. Em primeiro de abril de 2020, a Medida Provisória nº 934 estabeleceu normas excepcionais sobre o ano letivo da educação básica e do ensino superior decorrentes das medidas para enfrentamento da situação de emergência imposta pela pandemia da Covid-19. A partir da Medida Provisória, os sistemas de ensino começaram a organizar a realização de atividades não presenciais que foram importantes para manter uma rotina mínima de estudos e sobretudo de vínculo com os/as estudantes e suas famílias.
Para esta organização, as diversas normativas do Conselho Nacional de Educação, Conselhos Estaduais e Municipais foram fundamentais em todo o país. Soma-se a esse esforço, o papel extremamente estratégico, sobretudo no caso do Estado da Bahia, exercido pela União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime) e a União Nacional dos Conselhos Municipais de Educação (Uncme). Estas duas entidades, para além de suas atribuições orientadoras, assumiram um espaço vago deixado pelos poderes executivos tanto em âmbito federal, quanto no caso da Bahia, Estadual. A ausência de coordenação da política educacional e por consequência a práxis do Regime de Colaboração, agravou ainda mais as consequências dos desafios impostos pela pandemia.
Ainda há uma dificuldade de muitos atores e atrizes que circulam nos espaços de representação da educação pública, de fazerem um debate honesto sobre a ausência de apoio efetivo às escolas, aos educadores e educadoras, aos estudantes e seus familiares quanto a garantia do direito a educação. No entanto, mesmo tendo contextos diferentes de experiências com as atividades não presenciais nestes últimos dois anos, sem dúvidas, os municípios, com todas as dificuldades e limitações, foram os que seguraram a barra junto com as educadoras e educadores, desde os que atuaram na gestão aos que se dedicaram a pensar cotidianamente em seu movimento reflexivo de planejamento de aula estratégias para que as atividades chegassem aos estudantes.
O chamado Regime de Colaboração não tem passado de uma retórica, onde alguns, pela força da palavra de cargos que ocupam, tentam reduzir esse importante dispositivo à realização de reuniões com a participação de representação dos três entes federados. Na Bahia, esse discurso esvaziado, deixa de lado um grande legado de articulação já vivenciado através de ações como o Programa de Apoio à Educação Municipal (PROAM), que desenvolveu inúmeras ações em colaboração junto aos municípios baianos, em um passado recente.
O fato é que, passado dois anos deste difícil contexto e seus desafios, não existe uma política pública sequer no campo educacional instituída pelo Estado Brasileiro para dar o apoio necessários as escolas, educadores e educadoras, estudantes e seus familiares para garantia do direito a educação.
Em todas as oportunidades de diálogo que tenho, faço questão de destacar que tudo que foi feito até agora, foi com os esforços das educadoras e educadores, das equipes de gestão escolar, das equipes de secretarias municipais de educação que se desafiaram, e pelo compromisso com a classe popular e trabalhadora, buscaram estratégias para manter rotinas de estudos e vínculo com os estudantes e suas famílias. Também sempre destaco que temos que ter clareza das limitações, das fragilidades pedagógicas de muitas das nossas importantes iniciativas. Uma coisa foi o esforço, que tem que ser valorizado e defendido, de pensar as atividades e estratégias para que as atividades não presenciais chegassem a todos os estudantes (e temos casos que não chegaram). No entanto, outra coisa foi a devolutiva destas atividades, a qualidade daquilo que foi possível fazer dentro das condições do contexto dos estudantes. Eticamente, precisamos saber fazer essa reflexão.
Contudo, sem dúvidas, a pior opção foi não ter feito nada, e infelizmente, algumas redes em 2020 fizeram essa opção, e em 2021 fizeram um planejamento de trabalhar cerca de 1500 horas em menos de duzentos dias letivos. Ora, precisamos também ter a coragem de uma discussão ética e honesta sobre isso, e as consequências que estão com reflexos neste retorno presencial de agora.
Neste período de dois anos discutimos intensamente sobre as dificuldades socioeconômicas dos estudantes e suas famílias, as dificuldades que tivemos de condições de trabalho, de formação, de apoio pedagógico para realização das atividades. Os desafios de conectividade, de acesso a equipamentos de informática, celulares, e o uso pedagógicos destes recursos e ferramentas digitais. Digo que o sistema educacional brasileiro público falhou na garantia do direito à educação neste período. Na verdade, tem falhado não é de agora, até porque outra discussão que temos feito recorrentemente é que os desafios vivenciados nestes últimos dois anos, não são desafios novos e sim desafios históricos da educação pública brasileira, que foram escancarados com a pandemia.
De uma hora para outra, pela ausência desta coordenação e articulação da política educacional, municípios e suas escolas, foram intimados a exercerem sua autonomia na definição das estratégias possíveis para manutenção da educação escolar. Ora, o fomento ao exercício desta autonomia está presente em diversos dispositivos legais mesmo antes da pandemia, mas a experiência que temos historicamente na gestão e implementação de políticas públicas educacionais, é uma experiência verticalizada, de programas e projetos pensados de cima para baixo, tendo escolas e professores como executores. Na verdade, em nome de uma incompetência de gestão, incapacidade de articulação, de escuta acolhedora na busca de alternativas e estratégias para o enfretamento dos desafios impostos, os responsáveis pela coordenação e articulação da política de educação, lançaram as escolas, educadores e educadoras a própria sorte.
Mesmo que o § 9º do Art. 2º da Lei nº 14.040/2020 tenha colocado de forma explicita que “a União, os Estados, os Municípios e o Distrito Federal implementarão, em regime de colaboração, estratégias intersetoriais de retorno às atividades escolares regulares nas áreas de educação, de saúde e de assistência social”, o que vivenciamos foi uma verdadeira desarticulação entre os sistemas de ensino, como vários momentos de agravamento dos desafios postos. As aulas presenciais voltaram, e o Estado da Bahia, por exemplo, não teve formalizado e atuando sequer um espaço de diálogo para pensar estratégias intersetoriais de organização articulada deste retorno.
Precisava neste início trazer essa breve leitura do contexto, leitura que é minha como educador, leitura que não pretende ser expressão da verdade dos fatos, mas sim um olhar crítico, carregado de indignações, uma leitura provocativa para o debate, de quem esteve e ainda está implicado com esse processo. A partir desta consciência de ausência de coordenação da política educacional, quero destacar que neste retorno às aulas presenciais, o cenário não mudou, e que nós educadores e educadoras que efetivamente atuamos na educação básica, continuamos tendo à nós mesmos. E que bom que a gente tem a gente!
O ano letivo de 2022 não será mais fácil do que 2020 e 2021, e com certeza vocês já chegaram a essa conclusão a partir das inúmeras discussões nas atividades formacionais das Jornadas Pedagógicas, e a partir também das reflexões que vocês têm feito sobre as primeiras atividades diagnósticas que estão sendo realizadas com os estudantes neste retorno.
Falei muito nesta introdução dos desafios, mas, quero trazer para essa nossa reflexão as aprendizagens que também temos tirado deste desafiador contexto. Uma aprendizagem é que a ausência de coordenação da educação nos desafiou a efetivamente pensar estratégias a partir da nossa realidade. E esse é um aprendizado que não podemos abrir mão. As políticas educacionais com seus programas e projetos devem ser pensadas a partir das necessidades, dos desafios objetivos que enfrentamos no cotidiano da educação a partir da escola. O planejamento das secretarias de educação devem ser elaborados para dar apoio e condições para que as escolas e seus educadores e educadoras possam trabalhar a partir da realidade posta. Por isso, todo trabalho, como nos ensina Freire em seu livro “Cartas a Cristina”, deve ser “movido pelo gosto democrático de trabalhar com as classes populares, e não sobre elas; de trabalhar com elas e para elas”.
Talvez aí more o nosso grande desafio neste retorno das aulas presenciais, e gostaria de trazer algumas provocações reflexivas sobre o planejamento, currículo e avaliação a partir deste ponto. Quero começar na ordem inversa, falando sobre a avaliação, por compreender que o processo de avaliação está umbilicalmente ligado ao planejamento. A gente só pode avaliar o que foi planejado, o que foi sistematizado, delineado no planejamento. E o planejamento não começa em si mesmo, começa na dialogicidade com o contexto e sujeitos reais, a partir das necessidades socio pedagógicas e afetivas.
No ano de 2020, 402 municípios baianos vivenciaram, o Movimento Curriculante, sendo convidados com as educadoras e educadores a pensar, através de um processo formacional, o referencial curricular local. 302 municípios concluíram esse processo ainda em 2020, e durante 2021 mais alguns avançaram nesta elaboração. No entanto, 2021 continuamos com as atividades presenciais suspensas. Os documentos normativos e orientadores para a organização do trabalho pedagógico neste contexto pandêmico, trouxeram a perspectiva do Continuum Curricular, a necessidade de redefinição dos critérios de avaliação por cada sistema de ensino, a importância da reorganização curricular definindo os saberes, competências, habilidades que fossem possíveis de trabalhar diante do contexto de cada rede.
Algumas redes conseguiram avançar neste processo de organização, mas outras tantas nem tanto, por conta de diversos fatores que o espaço aqui não permite tecer neste momento. Mas, enfim, o que quero aqui provocar, é a reflexão, sobre a avaliação. É fato que, algumas redes, escolas, tiveram muitas dificuldades na organização pedagógica das atividades não presenciais. Não apenas por conta das condições materiais, de equipamentos ou conectividade. Precisamos ter a coragem de fazer o debate, sobre as dificuldades pedagógicas, metodológicas, que já estavam presentes antes da pandemia. A cultura o uso por muitos professores do livro didático como muleta, como único instrumento didático pedagógico; a cultura do uso da internet para o control C e control V de atividades sem nenhuma adequação a realidade dos estudantes ou as habilidades que se pretende trabalhar; o control C e control V de atividades de colegas que lecionam o mesmo componente curricular ou no mesmo ano também sem as adequações necessárias a realidade dos estudantes.
Em muitos casos, o que presenciamos foi a virtualização destas práticas na confecção de módulos e/ou blocos de atividades que foram enviados para os estudantes. Eu, particularmente, presenciei casos de escolas que realizaram até semana de prova no contexto de realização de atividades não presenciais. Trago essas questões para a reflexão, não como uma diminuição do trabalho realizado, mas como uma provocação sobre a responsabilidade pedagógica que precisamos ter neste processo, de reconhecer que temos desafios em nossa práxis pedagógica que precisam ser enfrentados por nós, pois, quando chegou no final do ano letivo de 2021, muitos educadores e educadoras, mesmo diante de todo esse cenário, ainda queriam reprovar estudantes.
Por outro lado, tivemos redes, escolas, educadores e educadoras que efetivamente conseguiram, a partir de experiências bacanas, reorganizar efetivamente o trabalho pedagógico e mesmo com as inúmeras dificuldades impostas pelo contexto, dar um sentindo mais didático às atividades propostas. Tivemos redes que redefiniram os critérios de avaliação, buscando uma forma mais justa e humanizada do registro deste conturbado percurso. Precisamos fortalecer o diálogo sobre essas experiências
Foram muitas discussões sobre a não reprovação de estudantes neste período, o que foi importante. Na verdade, o termo reprovação já deveria ter sido banido do dicionário educacional, no entanto persiste. Agora, o que precisa nos incomodar, é o que fizemos ou temos feito com os resultados desta avaliação realizada no ano letivo 2021.
É incrível, como na organização de muitas jornadas pedagógicas, parece que não existiu ano letivo anterior. Até se promove momentos de discussão sobre os desafios e aprendizagens do último ano letivo (geralmente em cada escola), mas, propositivamente, o que se faz com os resultados de avaliação do ano anterior? Ainda há uma falta de conexão entre o planejamento e a avaliação. Se nós vivenciamos dois anos com realização de atividades não presenciais, onde não foi possível trabalhar a maioria dos saberes, competências e habilidades expressas nos nossos documentos curriculares, como que nos propomos a iniciar um ano letivo sem fazer efetivamente um balanço do que foi trabalhado?
Essa dificuldade também não é nova, e sim histórica. O Planejamento, deve começar pela avaliação. O que é o diagnóstico senão um processo de avaliação? É na avaliação que começa o planejamento e é no planejamento que começa a avaliação. Não há como separar, mas, precisamos reconhecer que existem sim especificidades em cada um. Falar em diagnóstico no início do ano letivo, não é novidade. Contudo, quero trazer algumas provocações sobre o planejamento e uso destes diagnósticos. Como nós temos realizado historicamente esse diagnóstico no início do ano letivo? Partimos de uma análise dos resultados de aprendizagem do ano anterior? Existe alguma análise prévia da vida escolar anterior dos estudantes?
Quero convidar a reflexão de como planejamos o diagnóstico. Partindo das contribuições de Luckesi, antes de pensarmos instrumentos para a avaliação, devemos pensar quais os conteúdos desejamos avaliar. No caso de um diagnóstico no início de um ano letivo, deveríamos olhar para quais conteúdos os estudantes que estão chegando em determinado ano, deveriam ter consolidado para prosseguir os estudos. No nosso contexto atual, depois de dois anos de atividades não presenciais, precisamos ainda eleger, criteriosamente, quais conteúdos são essenciais para que este estudante tenha condições de prosseguir seus estudos. Feito o levantamento destes conteúdos, aí sim devemos partir para pensar qual o melhor ou os melhores instrumentos que podemos trabalhar para que os estudantes demonstrem o que sabem. E os instrumentos são muito variados, e não restritos apenas a provas e teses. Podemos realizar atividades em grupos, orais, de pesquisa, etc…
Mais do que instrumentos, precisamos pensar em situações de aprendizagens, pensar no ambiente, na criação de um clima acolhedor, na linguagem e nível de precisão destes instrumentos, de forma que os estudantes possam colocar em prática tudo que sabem. Não dá para ir para internet e fazer control C e control V de atividades diagnósticas e aplicá-las sem uma conexão com os objetivos de aprendizagens desejados e a realidade dos estudantes. O levantamento dos conteúdos e consequentemente objetivos de aprendizagens esperados, pode ser realizado em rede, com os educadores de cada ano, cada componente curricular dialogando sobre essa seleção. Isso é definir currículo, ação inerente a função docente. A troca de experiências, sugestões de estratégias, atividades, metodologias para a realização das atividades também é importante. O que temos o desafio ético de superar é o control C e control V de atividades que não dialogam com a realidade dos estudantes e com os objetivos do planejamento de ensino.
O passo seguinte, também ainda é muito desafiador para muitas práticas político-pedagógicas. Como planejar o trabalho a partir dos resultados dos diagnósticos? E, muitos de nós estamos agora neste momento entre a realização dos diagnósticos e o que fazer a partir destes resultados. E cá nos encontramos novamente entre nós, e mais uma vez eu digo “que bom que a gente tem a gente”! Não podemos nos esquecer que foram dois anos de atividades não presenciais, onde não tivemos as condições de trabalhar a grande maioria dos saberes, conceitos sistematizados historicamente pela humanidade. Por uma questão de justiça, não reprovamos os estudantes por não ter sido garantida estas condições de aprendizagem. Com isso, não podemos chegar agora, e desejar que um estudante do oitavo ano tenha sozinho aprendido tudo que era esperado para um estudante de sexto e sétimos ano.
Entra agora a necessidade de reorganização curricular. Não vamos recuperar e nem recompor aquilo que não foi possível trabalhar. Precisamos reorganizar o currículo escolar a partir dos diagnósticos que estamos realizando. Olhar para os saberes, as competências e habilidades que são essenciais, sem as quais não é possível avançar em cada campo do conhecimento, e estabelecer estratégias diferenciadas de trabalho. Os primeiros e segundos anos do ensino fundamental, são compostos hoje por uma maioria de crianças que foram privadas da interação social com crianças da mesa idade, que não vivenciaram com a intensidade necessária a ludicidade, a brincadeira na educação infantil. E, cabe sempre destacar, ao entrar no ensino fundamental, não deixaram de ser crianças. Nos quintos e sextos anos, temos um quantitativo também relevante de crianças com dificuldades de leitura, escrita, por exemplo. Crianças que ainda não concluíram o ciclo de alfabetização. Isso serve para os estudantes no segundo ciclo dos anos iniciais do ensino fundamental também.
Precisamos agora, olhar para rede, e junto com a rede, com as educadoras e educadores elaborar estratégias que dentro de uma reorganização curricular, permitam que estes estudantes possam continuar sua trajetória com o apoio necessário. Parece lógico isso, e é, mas na prática, tem sido extremamente desafiador construir essas estratégias, que envolvem desde a necessidade de investimentos para aquisição de materiais, montagem de espaços para atividades de contraturno, contratação de profissionais de suporte pedagógico até a nossa capacidade de reorganizar nossa prática pedagógica a partir da sala de aula.
E não temos outra saída, pelo menos para este ano, precisaremos entre nós, intensificar esse diálogo, essas trocas de experiências, em um diálogo honesto entre nós e com os nossos estudantes e nossas famílias. Tudo isso seria mais fácil se tivéssemos governos que efetivamente materializassem o regime de colaboração, através de uma coordenação da política educacional que olhasse para as vozes das escolas, e assim promovessem políticas públicas que nos dessem o apoio necessário. Mas, isso não é para 2022, e precisaremos de muita luta para que 2023 possa ser diferente. Até lá, acredito muito no fortalecimento destes espaços de troca de experiências, entre os educadores e educadoras de uma mesma escola, entre as escolas de uma mesma rede, de redes diferentes, entre os municípios em seus Territórios de Identidade. Está na hora de chamar também as Universidades Públicas, que tanto realizaram pesquisas da educação básica neste contexto pandêmico. Que contribuições esses resultados de pesquisas nos trazem?
Foi assim que sobrevivemos até aqui, compartilhando experiências, e será assim que atravessaremos com o mínimo de dignidade e honestidade possível este triste cenário de abandono da coordenação da educação pública.
Renê Silva – Colunista do Itiruçu Online.
Renê Silva, Doutorando em Educação pela Universidade Federal da Bahia. Pedagogo, Especialista em Fundamentos Sociais e Políticos da Educação e Mestre em Educação pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia.