O final do ano de 2021 e início de 2022, na educação, trouxe novamente para o foco dos debates os desafios gigantescos que ainda temos quanto ao financiamento da educação pública. Sobras, rateio, abono, piso, talvez tenham sido as palavras mais pronunciadas e compartilhadas na educação pública brasileira neste período, superando inclusive o termo “avaliação”, que até ensaiou ocupar um espaço de destaque por conta das dificuldades em avaliar os estudantes submetidos ao ensino remoto em 2021.
A aprovação da Emenda Constitucional nº 108 de 26 de agosto de 2020, popularizada como Lei do Novo Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (FUNDEB), sem dúvidas trouxe avanços importantes para o financiamento da educação básica, entre eles, destaco o fato de tornar o fundo permanente e de ampliar a complementação da União, mesmo que com vários condicionantes. O ano de 2021, foi o primeiro ano de vigência do novo Fundo, e a necessidade de regulamentação de alguns pontos, acabou causando uma dificuldade de planejamento financeiro para os sistemas de ensino, quanto a estimativa real de repasse.
No entanto, desde a aprovação da Lei do Novo FUNDEB, que eu tenho destacado que os atuais parâmetros do Fundo estão longe ainda de combater as desigualdades socioeducacionais e promover a tão anunciada equidade. Primeiro porque os próprios fatores de ponderação que norteiam o repasse do FUNDEB ao Distrito Federal, Estados e Municípios não conseguem sequer representar a necessidade de cada etapa e modalidade da educação, segundo porque eles não dão conta de elementos estratégicos na gestão da educação que impactam no investimento dos recursos do Fundo em cada sistema de ensino.
Diante da ausência de aprofundamento deste debate, assistimos um festival de desinformação e oportunismo político partidário de lados diversos, muitas vezes inclusive, até de pesquisadores em educação que sabem que os desafios do financiamento da educação no Brasil são mais complexos do que tem sido apresentado no teatro da disputa partidária.
Em busca de um justo pretenso direito à rateio, abono, reajuste do piso, acompanhamos em muitos sistemas de ensino um verdadeiro bombardeio, e até linchamentos públicos em redes sociais à gestores da educação, incluindo em alguns casos, reivindicações sem nenhum fundamento especificamente no caso rateios, em situações que o sistema de ensino atingiu a aplicação do mínimo que determina a legislação quando a aplicação em pagamento dos profissionais da educação. A capacidade de diálogo e abertura para compreensão da própria legislação foi substituída por uma corrida fake motivada pelas disputas político-partidárias.
Cabe aqui uma defesa à classe dos profissionais da educação, que tem em seu histórico muito sofrimento e desrespeito por parte de algumas gestões pouco comprometidas com a educação. Mas, cabe também uma defesa, à muitos profissionais da educação que assumem função de gestão, e que se mantém compromissados com a luta pela valorização profissional, mas que se veem em meio a um cenário de ausência de coordenação da política nacional, o que tem causado inclusive insegurança jurídica para tomada das medidas tão necessárias.
Quero aqui, mesmo que de forma breve, assinalar alguns elementos com objetivo de contribuir com o enriquecimento do debate para muito além dos oportunismos político partidários, convidando em especial, as professoras e professores, para adentrarem neste diálogo que é fundamental para as lutas travadas no cotidiano tanto para valorização profissional, quanto para a melhoria da qualidade da educação.
Quero começar abordando Fragilidades do FUNDEB que impactam na valorização profissional e melhoria da qualidade de educação. É de conhecimento de todos e todas, que o FUNDEB é composto por um percentual de 20% de uma cesta de impostos, e que é repassado aos sistemas de ensino conforme o número de estudantes matriculados na rede. O que não se discute de forma mais ampliada, é como é calculado esse valor aluno ano que serve de base para o repasse do Fundo aos sistemas de ensino. Antes de calcular o valor aluno ano, o Ministério da Educação, através de uma comissão Interministerial, que conta com a participação também de entidades representativas, se reúne para discutir e definir os fatores de ponderação que servirão de base para o cálculo do valor aluno ano.
Para cada etapa e modalidade é definido um fator de ponderação que será multiplicado depois pelo valor aluno ano base definido pelo Governo Federal, o que possibilitará para cada rede de ensino ter a estimativa de recursos, uma vez que a matrícula que serve de base para o cálculo de repasse, é do ano anterior ao do repasse. O fator de ponderação base para o cálculo é dos anos iniciais do ensino fundamental urbano. Ou seja, o aluno dos anos iniciais do ensino fundamental urbano, corresponde ao fator de ponderação 1 (um). A partir daí se discute, qual deve ser o fator de ponderação das demais etapas e modalidades da educação.
Por exemplo, o fator de ponderação para o aluno dos anos iniciais do ensino fundamental do campo, é de 1,15 (um vírgula quinze). Isso significa que o valor de cada aluno dos anos iniciais do ensino fundamental do campo, será 15% a mais do que o valor do aluno dos anos iniciais do ensino fundamental urbano.
Aqui, começa o problema do financiamento da educação básica pública brasileira. O fator de ponderação do aluno da educação de jovens e adultos, por exemplo, é de apenas 0,8 (zero vírgula oito), ou seja, 80% do valor do aluno dos anos iniciais do ensino fundamental urbano. Aqui cabe uma pergunta para ajudar na reflexão: o professor que leciona na educação de jovens e adultos, recebe 80% do salário do professor que leciona no ensino fundamental anos iniciais urbano? Apenas para trazer um elemento para essa reflexão, mas penso que vocês já devem estar pensando em outros elementos.
Outra questão importante para trazer para nossa reflexão, é quanto ao fator de ponderação do aluno de ensino fundamental em tempo integral. A cada dia, temos ampliado pedagogicamente as discussões no sentido da importância da oferta da educação integral com a ampliação do tempo do aluno na escola. Sobretudo, levando em consideração as consequências destes dois anos pandêmicos na educação, a educação integral sem dúvidas se torna uma necessidade ainda maior para buscar garantir estratégias de garantia do direito à educação em sua plenitude. Mas, o fator de ponderação para educação integral, é de apenas 1,3 (um vírgula três), ou seja, o município só recebe 30% a mais por estudante que tiver sua jornada escolar ampliada. Aí cabe mais uma pergunta: quando o município amplia a carga horária dos alunos, e tem a necessidade de ampliação de carga horária ou contratação de novos professores, o salário será apenas 30% do valor dos profissionais que atuavam com os alunos em um turno?
Claro que nos exemplos acima, eu usei como perguntas apenas a questão salarial, conduto sabemos dos impactos que estamos tendo no preço dos produtos da alimentação escolar, no combustível que acaba afetando o transporte escolar, aumento de materiais didáticos, pedagógicos e de limpeza. E, convido também à todos e todas se apropriarem dos valores dos programas suplementares repassados pelo Governo Federal, como de alimentação escolar, transporte, Programa Dinheiro Direto na Escola. Quanto tivemos de aumento nos últimos anos no repasse destes programas?
O que quero aqui trazer para o debate, é que os fatores de ponderação, que precedem o valor aluno ano, já trazem em sua definição, a inviabilização da garantia de uma valorização profissionais digna, e também da melhoria da qualidade da oferta da educação pública.
No entanto, estas não são às únicas limitações do FUNDEB como maior fonte de financiamento da educação básica brasileira. Como dito anteriormente, o Fundo é repassado com base na matrícula de alunos de cada sistema de ensino. O repasse do FUNDEB, para efetivamente contribuir de forma mais justa com a diminuição das desigualdades socioeducacionais e valorização dos profissionais da educação, deveria no mínimo incluir mais dois fatores de ponderação em sua fórmula de repasse dos recursos:
Primeiro o nível dos professores de cada sistema de ensino. Como exemplo, se compararmos duas redes de ensino, dois municípios, que tenham 2.000 estudantes e 160 professores cada, teremos nestas duas redes, quase que a mesma estimativa de receita do FUNDEB para determinado ano. Claro que haverá alguma variação, por conta da diferença de alunos matriculados em cada etapa e modalidade. Imaginemos que as duas redes têm inclusive planos de carreiras que determinam percentuais de mudança de níveis iguais, 20% para graduação e 10% para a pós-graduação. O município A ainda tem alguns professores que não fizeram a graduação e a maioria já com graduação, mas nenhum com pós-graduação. No município B, todos os professores já possuem graduação e pós-graduação. Qual município necessitará de maior investimento em folha de pagamento? Município B, é claro. Mas, a diferença de nível dos profissionais da educação não é levada em consideração no repasse do FUNDEB, o que poderá trazer maior dificuldades para que o município B realize o pagamento.
Um segundo elemento que o FUNDEB não leva em consideração, é o tamanho territorial do município. O município B, além de ter profissionais com nível mais elevado de formação, também tem o dobro do tamanho territorial do município A. Seus 2.000 alunos estão distribuídos por 3 escolas na sede e 15 no campo, com escolas com distância de até 80 km da sede do município. Enquanto isso, no município A, os 2.000 estudantes estão distribuídos em 6 escolas na sede e 5 no campo. Qual município tem mais necessidade de investimentos para manter sua rede?
O FUNDEB não leva em consideração o nível de formação dos profissionais da educação e nem o tamanho territorial de cada rede para manutenção das suas responsabilidades, o que muitas vezes, contribui para o agravamento das desigualdades socioeducacionais. Esse debate, não é colocado à tona, e estes elementos impactam na capacidade de melhoria das condições de trabalho e também de valorização dos profissionais da educação.
Quanto a valorização profissional, especificamente, o Novo FUNDEB mantém uma garantia muito importante para nós profissionais da educação. No mínimo 70% dos recursos do Fundo devem ser investidos no pagamento dos profissionais da educação. Isso precisa ser esclarecido com toda força, pois neste final de ano ficou parecendo que os municípios que não atingiram esse percentual poderiam usar esse recurso para outros investimentos. Não podem, e nos tranquilizemos quanto a isso. Mesmo os municípios que porventura não tenham atingido os 70%, eles não podem usar o recurso que faltou para atingir o percentual em outra finalidade. Precisarão usar na valorização salarial. O importante é lutar para que haja transparência na apresentação dos investimentos realizados, criando, por exemplo, uma comissão para este acompanhamento.
Só que, também não vi neste debate, ninguém trazer a reflexão sobre os riscos de se ter incluídos todos os profissionais da educação nos chamados 70% do Novo FUNDEB. Muitos municípios, estavam aplicando mais de 60% com o pagamento dos profissionais do magistério, e quando se somava o pagamento dos demais profissionais da educação, muitos municípios chegavam a quase 100% do Fundo apenas para pagamento de pessoal. Com a inclusão de todos nos 70%, isso pode trazer prejuízos para os profissionais do magistério, uma vez que outros tantos municípios, já aplicavam 70% ou mais só com o pagamento dos profissionais do magistério. Sem contar que, cada vez vai se achatando mais os recursos para manutenção de desenvolvimento do ensino.
Outro ponto extremamente importante de se trazer para dentro do debate, é a incompatibilidade da exigência do cumprimento pela Lei de Responsabilidade Fiscal de cumprimento de no máximo 60% da receita com pagamento de pessoal (6% para o poder legislativo e 54% para o poder executivo), e a exigência de no mínimo 70% do FUNDEB para pagamento dos profissionais da educação. Para os municípios menores, que são a maioria, a educação chega a representar mais de 50% do número de servidores, o que dificulta o equilíbrio entre o cumprimento dos dois índices.
Para finalizar essas breves contribuições para o debate, cabe aqui destacar o desafio que temos ainda de cumprimento da meta 18 da Lei 13.005/2014, quanto a elaboração de plano de carreira para todos os profissionais da educação, e da meta 17 desta mesma Lei que prevê valorizar os (as) profissionais do magistério das redes públicas de educação básica de forma a equiparar seu rendimento médio ao dos (as) demais profissionais com escolaridade equivalente, até o final do sexto ano de vigência deste PNE.
Quero com isso colocar para o debate que neste contexto o problema não está no reajuste do piso nacional dos profissionais do magistério que está alinhado com a meta 17 do Plano Nacional de Educação. O problema está nas limitações da atual política de financiamento da educação básica pública, tanto nas fragilidades do próprio FUNDEB que impactam negativamente na própria valorização profissional e no investimento de ações de melhoria da qualidade da educação, quanto em outros dois elementos que senti falta nos debates calorosos de dezembro de 2020 e janeiro de 2021: a Emenda Constitucional 95 e o não cumprimento da meta 20 da Lei 13.005/2014. As metas 17 e 18 (assim como as demais metas do PNE) estão atreladas ao cumprimento da meta 20 do PNE com a ampliação de recursos para a educação.
Bem, mas, para não me alongar mais, deixo o debate aberto, pois existem outros elementos que também são importantes de serem levados em conta neste debate, como o posicionamento dos órgãos de controle das contas públicas quanto a questão de rateio e abono tendo como base as vedações da Lei Complementar 173 de 27 de maio de 2020, assim como também as interpretações jurídicas sobre a validade da Lei 11.738/2008 (Lei do Piso), após a aprovação da Emenda Constitucional 108. Cabe registrar para quem não acompanhou esse debate, que a Lei do Piso, no parágrafo único do art. 5º, diz que “a atualização de que trata o caput deste artigo será calculada utilizando-se o mesmo percentual de crescimento do valor anual mínimo por aluno referente aos anos iniciais do ensino fundamental urbano, definido nacionalmente, nos termos da Lei no 11.494, de 20 de junho de 2007. O grande questionamento foi porque a Lei do Novo FUNDEB, no seu art. 53, revogou, “a partir de 1º de janeiro de 2021, a Lei nº 11.494, de 20 de junho de 2007, ressalvado o art. 12 e mantidos seus efeitos financeiros no que se refere à execução dos Fundos relativa ao exercício de 2020”.
Importante registrar também que o FUNDEB não é a única fonte de recursos para educação, mas para cerca de 80% dos municípios brasileiros é quase que a fonte exclusiva, uma vez que estes municípios quase não possuem arrecadação própria. Contudo, é importante incluir nas análises de impacto financeiro as demais fontes.
Sigamos no debate, pautados pelo diálogo fraterno e ético, reconhecendo que ainda existem vários desafios para garantia de um financiamento público para a educação pública mais equânime, e que também há, desafios para qualificar a gestão destes recursos, que perpassam por mais transparência e envolvimento da comunidade neste processo.
Sobre o autor:
Renê Silva, Doutorando em Educação pela Universidade Federal da Bahia. Pedagogo, Especialista em Fundamentos Sociais e Políticos da Educação pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. Renê é colunista do Itiruçu Online – Aqui Bahia.