O contexto atual da pandemia da COVID-19, expôs muitas das mazelas presentes historicamente na educação pública brasileira. Tenho dito que, os desafios expostos para o desenvolvimento do trabalho em educação, de forma remota, são os mesmos que temos enfrentado desde sempre para superação do instrucionismo e da compulsão pela quantificação enraizados nas nossas práticas educativas escolares.
O professor Miguel Arroyo, nos chamava a atenção em 2013, de que os currículos, o que ensinar, estava marcando “nossas identidades profissionais como referente único”. PROFESSOR COMO AULISTA, responsável por passar a matéria, “sem outras atividades que nos desvirtuem dessa função nos tempos de aula”. Nós, professores, sempre vivenciamos a contradição entre garantir o conteúdo, “atender ou renunciar os alunos, seus problemas, suas inseguranças, seus processos tensos de formação moral, cultural, identitária”…
Tem alguns anos, que digo que, para atender as políticas educacionais pensadas e implementadas de forma verticalizada, alinhadas ao interesse de “fornecer os conhecimentos e o pessoal necessário à maquinaria produtiva em expansão do sistema do capital, como também gerar e transmitir um quadro de valores que legitima os interesses dominantes” (Mészáros), não será mais necessário que os profissionais da educação precisem passar por um curso de graduação em nível superior e mais ainda, ter a necessidade de prosseguimento em estudos de cursos de pós-graduação. Basta concluir minimamente o Ensino Médio, e receber o treinamento adequado para aplicar os “módulos docentes”, pensados por um seleto grupo de eleitos, e consequentemente aplicar os “módulos dos estudantes”, através da já milenar prática instrucionista com suas atualizações travestidas de inovação. Vivenciamos programas de formação que até a rotina de desenvolvimento das atividades em sala de aula pelo professor já vinha como “sugestão”.
Na avaliação de Arroyo, “avançávamos para articular o ensinar e educar no novo tecnicismo das políticas de ensino por competências e de avaliação por resultados”, sendo pressionados a manter o foco apenas nos conteúdos que cairão nas provinhas e provões oficiais. Denunciava ainda que os “controles do sistema, das diretrizes, dos ordenamentos curriculares e disciplinares, das avaliações continuarão rígidos, cada vez mais sofisticados, reagindo a esse crescimento das autorias docentes”. Seu prognóstico parece ter sido assertivo.
Nós educadores/professores, precisamos estar atentos a esses movimentos de disputa, que silenciam nossa prática autoral, pensante, crítica, nos colocando como meros executores de programas e projetos pensados por grupos de eleitos, quase sempre, a serviço da maquinaria produtiva.
A precária estrutura de nossas escolas, as escassas condições de trabalho, os insuficientes investimentos em equipamentos de informática e conectividade, a ausência de políticas consistentes de formação continuada para os profissionais da educação, e tantas outras mazelas históricas que foram expostas com a suspensão das aulas presenciais e necessidade de realização de atividades não presenciais, não podem servir de pretexto para municiar ainda mais aqueles que defende o fim da educação pública. Estejamos atentos para que, mesmo em nossas limitações, impostas na maioria das vezes pela ausência de prioridade e investimentos adequados da educação pelo Estado brasileiro, não alimentemos ainda mais o descredito que tentam acunhar para a educação pública.
Com todos os desafios que temos, é essa mesma educação pública que vem através da luta, do compromisso, da resiliência, como diria Paulo Freire, da amorosidade de grande parte dos seus profissionais, transformando vidas, abrindo caminhos, alimentando sonhos, incluindo socialmente inúmeras pessoas.
Conscientes deste contexto de disputas e interesses diversos que circundam a educação pública, estejamos atentos as novas roupagens que surgem neste novo contexto como soluções práticas, em embalagens belíssimas e discursos eloquentes. Disfarçada de inovação, o instrucionismo virtual vai ganhando força, se apresentando como alternativa às dificuldades de falta de condições adequadas de trabalho e formação para os profissionais da educação lidarem com os recursos e ferramentas digitais no desenvolvimento de atividades remotas.
O instrucionismo virtual se reveste de inovação, quando coloca à disposição de redes de ensino e professores, plataformas conteudistas prontas para auxiliar (SUBSTITUIR) o trabalho docente. Plataformas lindíssimas, com os conteúdos organizados por ano de ensino, unidades letivas, com hiperlinks para aprofundamento de leituras, tudo lindo e maravilhoso, bastando garantir ao estudante acesso para que continue seu processo de instrução escolar. Ao professor sobra, se for necessário, um canal para tirar possíveis dúvidas, mas, se o professor não tiver familiaridade para se adequar a essa inovação, não tem problema, as plataformas disponibilizam robôs, prontos para responder as dúvidas mais comuns que possam surgir.
O instrucionismo virtual, tomou conta inclusive do lugar da formação contínua neste contexto, sendo os professores e professoras durante estes últimos 11 meses bombardeados de Lives-Cursos aleatórios, com apresentação dos pacotes e soluções práticas para lidar com esse contexto. Determinados cursos virtuais dispensaram inclusive a mediação de professores, sendo ofertados apenas através de robôs. Na verdade, foi uma demonstração prática que serve de um aviso prévio a função docente.
Diante de nossas dificuldades em realizar as atividades não presenciais, as soluções de inovação que aparecem podem contribuir para acelerar um processo de desmonte da escola pública e substituição de parte da atividade docente por recursos e ferramentas digitais.
Não há dúvidas que recursos e ferramentas digitais podem e devem ser incorporados nas práticas pedagógicas. Existem sim, como também temos tido acesso, inúmeros recursos e ferramentas que podem potencializar o processo de ensino, ampliando as possibilidades de aprendizagem e desenvolvimento da autonomia, dentro de uma perspectiva dos estudantes como sujeitos ativos deste processo, mas, com a interação, a mediação, a curadoria do professor e da professora. A Cybercultura precisa sim ser apropriada pela escola e incorporada em nossas práticas pedagógicas, sobretudo na perspectiva de um trabalho interdisciplinar.
Por isso, como já sinalizei no artigo anterior, “Flexibilizar é alongar sem dor (MOURA, 2020)”, temos que tomar cuidado para não oferecer menos a quem precisa de mais. Na perspectiva desta virtualização do instrucionismo, a discussão sobre “conteúdos mínimos”, “conteúdos essenciais”, podem comprometer ainda mais a qualidade de nossa educação pública e sobretudo o direito de aprender de cada um de nossos estudantes. Plataformas, cursos, manuais estão sendo disponibilizados para inclusive poupar os professores do trabalho de elegerem os saberes que são necessários trabalhar neste contexto.
Cabe a cada professor e professora, dentro da sua realidade, não abrir mão da definição dos saberes que devem ser trabalhados pela escola. Os saberes precisam ser eleitos pelos professores que estão no chão da escola, com base naquilo não que é possível, mas sim necessário para este momento, reservando para um momento futuro de retorno as aulas presenciais, aqueles saberes que precisam de outras condições para uma abordagem de forma mais sistematizada. Nesta perspectiva, não existe minimização de conteúdos ou seleção e exclusão. Existe sim uma adequação, restruturação diante do contexto e das condições efetivas para que o trabalho pedagógico ocorre em favor da aprendizagem.
Outro aspecto que ainda nos persegue, é o que tenho chamado de compulsão pela quantificação na educação. Parece que precisamos de uma muleta numérica para justificar nossas tomadas de decisões na educação. Tanto que já estudamos, participamos de formação sobre avaliação da aprendizagem, mas parece que ainda não conseguimos sobreviver sem a prova e a nota. Estudamos tanto Luckesi, e continuamos mergulhados na prática do exame em educação. E olhem que a própria normativa legal (Art. 24 da LDB) fala que a verificação do rendimento escolar observará a “avaliação contínua e cumulativa do desempenho do aluno, com prevalência dos aspectos qualitativos sobre os quantitativos e dos resultados ao longo do período sobre os de eventuais provas finais”.
E ficamos muitos de nós, neste contexto de excepcionalidade, querendo a qualquer custo quantificar o que os estudantes realizaram ou não, e o pior, tem gente que ainda fala em reprovação. Tudo em nome de preencher as cadernetas e os boletins, para dar “respaldo” ao trabalho realizado. Gente, o importante é o registro do percurso, a avaliação deve ser sempre continua, e neste contexto então. A avaliação deve continuar como sempre deveria ter sido, à serviço da aprendizagem, do replanejamento do trabalho pedagógico. Existem inúmeras possibilidades de registro qualitativo do processo de aprendizagem, como relatórios, portifólios, diários, produções escrita e oral, vídeos, desenhos e imagens, etc… Se houver uma exigência do sistema em quantificar esse percurso, que se atribua uma nota aos registros qualitativos, mas para isso não precisa se apegar a uma prova.
Outra quantificação que tem tirado noites de sono, sobretudo de gestores, é quanto a dias letivos e carga horária. Por mais que tenhamos nestes últimos 45 dias discutido a necessidade de cautela, prudência e bom senso quanto a essa questão, ainda nos pegamos com desenhos de calendários escolares que ao mesmo tempo propõem aumento de carga horária diária, sábados letivos, diminuição de recessos e até férias, tudo para que se “dê conta até 31 dezembro de 2021”, de dois anos letivos. Isso é tornar ainda mais doloroso um contexto que não está sendo fácil para ninguém. Sobrecarregar estudantes e professores de atividades, sem considerar como importantes a vivência de outras rotinas que também são fundamentais para a aprendizagem e desenvolvimento, é aprofundar mais ainda os prejuízos deste processo. Não se recupera qualidade com excesso de quantidade. Estudantes e professores são seres humanos, e não máquinas, onde se pode programar para rodar mais dias e horário e assim aumentar a produção. O curioso é que muitas vezes vemos essa compulsão, por educadores que se intitulam do campo progressista da educação.
Tudo que pudermos fazer neste contexto ainda será insuficiente. Precisamos ter claro isso. Por isso que, qualitativamente, precisamos pensar quais os saberes necessários, indispensáveis para se trabalhar diante das condições que temos, procurando fazer o melhor possível, e quando for possível um retorno presencial, precisaremos reorganizar o tempo escolar. E, reorganizar o tempo escolar, não se limita à 2021, mas sim aos próximos anos também. As redes de ensino precisarão dialogar efetivamente entre si, para inclusive dar conta de que esse planejamento tenha uma continuidade quando da necessidade de migração de estudantes entre as redes. Isso é o continuum curricular na prática. O próprio planejamento do cômputo de carga horária de atividades não presenciais, precisa levar em consideração as condições objetivas dos estudantes para realizarem essas atividades. Calendário, hora-aula e dias letivos devem estar à serviço da aprendizagem.
Enfim, termino minhas reflexões com uma frase, que é um pedido de Rubem Alves, que acredito ser bastante pertinente para o contexto atual, para que não percamos a sensibilidade que nos é peculiar: “Vai aqui este pedido aos professores, pedido de alguém que sofre ao ver o rosto aflito das crianças, dos adolescentes: lembrem-se de que vocês são pastores da alegria, e que a sua responsabilidade primeira é definida por um rosto que lhes faz um pedido: “Por favor, me ajude a ser feliz…”
Que a educação seja instrumento para tornar esse momento mais leve para nossas crianças, adolescentes, jovens e adultos!
Renê Silva
Pedagogo, Especialista em Fundamentos Sociais e Políticos da Educação, Mestre em Educação pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia
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