Casos como os dos sete trabalhadores encontrados em condições análogas à escravidão, na terça-feira (21), em uma obra de construção civil em Barra Grande, no litoral sul da Bahia, não são isolados. Pelo contrário, no estado, os registros de situações assim estão se multiplicando. Em quatro anos, de acordo com o Ministério do Trabalho (MT), o número de pessoas resgatadas dessas condições cresceu 290% por aqui. Dados do Portal de Inspeção do Trabalho apontam que, em 2019, foram 21 os trabalhadores retirados de situações análogas à escravidão. Em 2020, saltou para 64. No ano seguinte, 70. Em 2022, pulou para 82.
No caso de Barra Grande, mais precisamente na Península de Maraú, as empresas que contrataram trabalhadores não tiveram os seus nomes revelados e ninguém foi preso. Apesar disso, o MPT – Ministério Público do Trabalho explica que as empresas quitaram as verbas rescisórias e assinaram um Termo de Ajuste de Conduta (TAC) emergencial, arcando com os custos de hospedagem, alimentação e transporte dos trabalhadores até as cidades de origem.
O órgão diz ainda que negocia um outro termo que garanta o pagamento de indenização por danos morais aos trabalhadores e à sociedade. Entre as sete vítimas, seis eram homens jovens e um ainda adolescente, com 16 anos. Este é, inclusive, o perfil mais comum das vítimas. Segundo o Observatório da Erradicação do Trabalho Escravo e do Tráfico de Pessoas, que monitora o perfil dos trabalhadores resgatados entre os anos de 2002 e 2022 em todo o país, homens foram 93% das 43.738 vítimas nos casos onde há a descrição de gênero. Dentre estes, o público entre 18 e 29 anos representa 44%, com 18.273 registros.
O que explica o crescimento?
As situações de trabalho análogo à escravidão na Bahia começaram a eclodir, principalmente, com a pandemia. Ana Paula Studart, advogada especialista da área trabalhista e sócia do 4S Advogados, afirma que a situação não é à toa. De acordo com ela, as vulnerabilidades social e econômica da população brasileira, acirradas no período pandêmico, estão entre as principais causas para o avanço dos casos de trabalho em condições análogas à escravidão atualmente.
“O desemprego, a falta de instrução e a baixa qualidade de vida acabam levando à aceitação dessas condições que caracterizam o trabalho escravo moderno. Trabalhadores desesperados, com sérias dificuldades econômicas, acabam acreditando em falsas propostas de emprego”, explica ela, que é mestre em Direito.
A especialista também cita o aumento de denúncias realizadas nessas situações. E aponta, ainda, um enfraquecimento nas ações de combate pelos órgãos responsáveis com os cortes de orçamento dos últimos anos e a falta de auditores fiscais do trabalho, responsáveis por resgatar trabalhadores, interditar empresas, calcular rescisões e trabalhar para a indenização das vítimas encontradas.
“Apesar do esforço dos órgãos de fiscalização e do aumento das denúncias, houve redução das fiscalizações nos últimos anos tanto por conta da pandemia como pela ausência de auditores. Existem muitos cargos vagos e uma necessidade de mais pessoas para atenderem às denúncias e realizarem a fiscalização necessária”, destaca.
Membro do Sindicato Nacional dos Auditores-fiscais do Trabalho (SINAIT) e parte da direção na Bahia, Daniel Fiúza é auditor fiscal do trabalho e destaca que o número de profissionais no setor está muito aquém do que deveria existir para uma fiscalização robusta e condizente com o número de trabalhadores ativos do estado.
“Além do trabalho escravo, temos diversas questões para fiscalizar, seja de segurança ou saúde do trabalhador. Hoje, no estado, temos cerca de 100 auditores. Considerando que precisa ter um auditor para cada 15 mil trabalhadores ativos, precisaríamos de quase o dobro disso, quase 200 para dar conta”.
No Brasil como um todo também há menos fiscais que casos a serem fiscalizados, diz Daniel. São 1.900 auditores fiscais de trabalho, sendo somente 1.400 em área de fiscalização porque os outros 500 ficam em cargos de chefia e coordenação. O ideal seria, pelo menos, seis mil auditores. Por isso, ele acredita que há, seguramente, uma subnotificação de casos análogos à escravidão em meio a alta dos números.
“Não tenha dúvida que poderia ser mais. Lá em Ilhéus, onde fui coordenador, a gente fez alguns resgates no cultivo de cacau, na construção civil e em outras áreas. No entanto, ali, são três auditores para cobrir um milhão de trabalhadores ativos. Então, apesar de localizar casos, é inviável produzir a fiscalização necessária para conter mais casos”, explica Fiúza.
Traficados para o trabalho escravo
Os trabalhadores baianos passam por situações análogas à escravidão em outras partes do país. Segundo o Painel de Inspeção do Trabalho, a Bahia é o segundo estado de onde mais partem pessoas traficadas para trabalho escravo no país, com 408 registros entre 2018 e 2021. Os números de 2022 ainda não foram divulgados pelo painel. Com os dados disponíveis, o estado fica atrás na estatística apenas de Minas Gerais, que registrou 761 vítimas no período.
Os municípios baianos com maior número de trabalhadores vítimas dessa situação são Xique-Xique (53), Porto Seguro (39), Salvador (14), Itabuna (9) e Angical (5). Apesar de não ter em mãos os números de 2022, a Bahia já sabe que, em 2023, ao menos 198 trabalhadores foram resgatados dessas condições em vinícolas terceirizadas das empresas Aurora, Garibaldi e Salton, em Bento Gonçalves, no Rio Grande do Sul.
As vítimas já voltaram para a Bahia e foram encaminhadas para o mercado de trabalho, além de contar com a indenização de quase R$ 30 mil das empresas para cada trabalhador. Na esfera penal, de acordo com o Ministério Público do Trabalho da Bahia (MPT-BA), houve recente operação de busca e apreensão da PF para instruir o inquérito que apura o crime de submissão ao trabalho escravo.
O procurador-geral do Trabalho, José Lima de Ramos, veio à Bahia no último dia 10 de março para se reunir com órgãos de fiscalização e o judiciário para articular uma resposta ao caso de Bento Gonçalves. Saiu das reuniões com otimismo:
“Encontramos no TRT daqui da região um campo fértil para ações de defesa dos direitos fundamentais. Articulações são necessárias para saber enfrentar exatamente essa chaga do trabalho escravo contemporâneo”, diz.
Procurador-chefe do MPT Bahia, Luís Carneiro se reuniu com o procurador geral para reforçar o compromisso de combate ao crime. Ele falou à reportagem sobre o que é trabalho escravo, que independe do pagamento de salário. “Trabalho escravo é submeter uma pessoa a condição sub-humana. Não é só colchão fino, pouca comida. É uma condição de degradação completa em alguns elementos concorrem para que você tire todos os elementos fundamentais do ser humano”, afirma Carneiro.
Trabalhadores resgatados fora dos estados de origem:
761 – Minas Gerais
408 – Bahia
308 – Maranhão
201 – São Paulo
188 – Ceará
165 – Piauí
127 – Pernambuco
117 – Goiás
116 – Pará
113 – Mato Grosso do Sul
49 – Alagoas
37 – Sergipe
33 – Paraíba
30 – Tocantins
29 – Paraná
27 – Mato Grosso
25 – Santa Catarina
24 – Espírito Santo
19 – Rio Grande do Norte
18 – Roraima
13 – Rio de Janeiro
12 – Amazonas e Rio Grande do Sul
9 – Rondônia
2 – Distrito Federal
1 – Amapá
0 -Acre
Com informações do Correio.