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O que é o ‘arrebatamento’, a doutrina da volta de Cristo que ganhou destaque no Carnaval

Uma das definições do dicionário para o termo “arrebatamento” é “estado de profundo êxtase e enlevo espiritual”. Para religiosos, sobretudo os evangélicos pentecostais, a palavra está muito atrelada à ideia de fim dos tempos e da volta triunfal de Jesus.

No último domingo (11), no Carnaval baiano, a cantora Baby do Brasil — que também é pastora evangélica e já se autoproclamou “popstora” — declarou que todos precisam estar atentos “porque nós entramos em Apocalipse”.

“O arrebatamento tem tudo para acontecer entre cinco e dez anos”, disse ela durante apresentação da cantora Ivete Sangalo em um bloco em Salvador.

Passagens da Bíblia, mais especificamente a primeira das cartas escritas pelo apóstolo Paulo de Tarso (5-67 d.C.) aos cristãos de Tessalônica, hoje parte da Grécia, sugerem esse cenário.

“Porque o Senhor em pessoa, ao sinal dado, à voz do arcanjo e ao toque da trombeta de Deus, descerá do céu; então os mortos em Cristo ressuscitarão primeiro; em seguida nós, os vivos que tivermos ficado, seremos arrebatados com eles sobre as nuvens, ao encontro do Senhor, nos ares, e assim estaremos sempre com o Senhor”, diz o trecho. Em outras palavras, o texto bíblico descreve o que acontecerá quando ocorrer a aguardada volta de Jesus pelos cristãos, com a ressurreição dos mortos e o arrebatamento, aos céus, dos vivos.

“Essa passagem [da carta de Paulo] é alvo de muitas interpretações”, pontua à BBC News Brasil o historiador, teólogo e filósofo Gerson Leite de Moraes, professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie.

Assim como toda leitura bíblica, ele adverte que é preciso observar o contexto histórico do texto.
“Paulo estava vivendo um problema específico com essa comunidade de Tessalônica. A comunidade entrou num marasmo de esperar a volta de Cristo, as pessoas estavam simplesmente abandonando suas atividades, seus afazeres… O apóstolo tentou de alguma maneira dizer: continuem vivendo, porque ninguém sabe quando isso vai acontecer. Aí ele escreve essa passagem falando desse suposto encontro entre os que estiverem vivos e Jesus”, contextualiza Moraes.

Algumas informações sobre o que se dizia na época são necessárias para que a leitura não seja feita com anacronismos.

“A primeira coisa a ser pontuada é que Paulo esperava de maneira confiante e com uma certeza inabalável que Cristo voltaria enquanto ele ainda estivesse vivo”, lembra o teólogo. “E isso não aconteceu. Quase 2.000 anos depois, gerações sucessivas, e Cristo não voltou.”
O segundo ponto foi o papel de liderança do apóstolo.

“Paulo estava, de alguma maneira, tentando tratar de um problema: uma comunidade que resolveu simplesmente aguardar a volta, como uma seita. E Paulo diz que não é bem assim. E afirma que quando acontecer, o que nós veremos é que será ouvida a voz do arcanjo, ressoada a trombeta, e descerá dos céus o Senhor, os mortos ressuscitarão e depois os vivos se encontrarão com Jesus: este é o suposto arrebatamento”, explica.

Líder do Grupo de Estudos do Protestantismo e Pentecostalismo da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), onde também é professor, o sociólogo Edin Sued Abumanssur afirma que, na carta, Paulo “tentava explicar aos cristãos de Tessalônica o que iria acontecer no final dos tempos”.

“A igreja dessa cidade estava muito preocupada com o que viria depois. E Paulo tentou esclarecer. Interessante é que outras cidades da época onde havia igrejas cristãs, onde o cristianismo estava começando, não tinham o mesmo problema, as mesmas preocupações”, atenta Abumanssur.

Ele ressalta que, “na ideia de Paulo, os cristão que permanecerem firmes na fé serão arrebatados e vão se encontrar com Cristo nas nuvens”.

“A questão do arrebatamento é uma doutrina muito polêmica, muito disputada, absolutamente não consensual: a doutrina da volta de Cristo”, diz o sociólogo.

Significados do arrebatamento
Explicada a ideia, é hora de entender como essa passagem bíblica acabou sendo interpretada ao longo dos séculos — e como é entendida por grupos contemporâneos, que tendem a expressar frases como a proferida pela cantora Baby do Brasil.

“Fica a pergunta: o que significa esse encontro com Jesus nos ares? Porque supostamente você flutuar e se encontrar com ele, quando mortos estão ressuscitando, isso me parece uma coisa até trivial tendo em vista o que está acontecendo. O fenômeno é que, de repente, uma divindade vem ao encontro de seu povo, mortos estão ressuscitando e ganhando novamente seus corpos e os vivos estão sendo elevados”, comenta Moraes.

O teólogo acrescenta que toda essa narrativa é “miraculosa”. Ele diz que a determinados setores do neopentecostalismo é cara a “ideia de flutuar, de encontrar nos ares. Por isso se fala tanto desse ideal de arrebatamento”.

E quando vai ser o arrebatamento?
Mas é preciso mergulhar um pouco mais nas escrituras para vislumbrar o entendimento do tempo do fim do mundo, conforme cada interpretação.

Pois se Baby do Brasil diz que esse arrebatamento está prestes a acontecer, isso configura seu pensamento dentro de uma das linhas interpretativas de outro livro bíblico, o último do cânone, o livro do Apocalipse.

Ela se situa naquilo que se entende como pensamento pré-milenismo. Ou seja: entende, como é comum dentre a maioria dos cristãos pentecostais e neopentecostais, que um tempo de tragédias indica a volta de Jesus que, então, chegará para estabelecer seu reino de paz e justiça na Terra.

Aquecimento global, pandemia de Covid-19, guerras na Ucrânia e em Israel, enchentes, terremotos: tudo isso seriam indicativos dessa ideia para alguns religiosos.

A narrativa está no capítulo 20 do Apocalipse. Descreve um anjo que desce do céu e aprisiona um dragão “que é o Diabo e Satanás”, “para que não seduzisse mais as nações até que se completassem os mil anos”.

Depois de tal período, o demônio novamente seria solto para a batalha final.

“Essa passagem é uma espécie de complemento teológico da visão do arrebatamento”, comenta Moraes.

O teólogo lembra, contudo, que há, na história do cristianismo, três interpretações para essa alegoria bíblica: os pré-milenistas, os pós-milenistas e o amilenistas.

“A maioria dos chamados pentecostais, sejam os clássicos ou os neopentecostais, acabam adotando o princípio [do pré-milenismo]”, explica Moraes.

Nesse sentido, eles entendem que haverá a volta de Jesus, com o arrebatamento, e isto estaria atrelado ao estabelecimento de um reino de justiça na Terra, por mil anos.

“Guerras, terremotos ou epidemias são encarados como prenúncio da volta de Cristo, como sinais de que este tempo está chegando e seremos arrebatados, que Cristo vai governar a Terra durante mil anos”, observa o teólogo Moraes.
“E eles entendem que este governo de Jesus Cristo será em Jerusalém, a Jerusalém que conhecemos hoje. Há a ideia de um reino político de Jesus”, diz o teólogo.

A outra visão, a dos pós-milenistas, entendem que primeiro será estabelecido um tempo de paz e justiça e, só então, Jesus voltará.

Segundo Abumanssur, esta corrente normalmente é defendida por “correntes teológicas mais envolvidas com transformações sociais”, pois pressupõe uma melhoria da qualidade de vida do mundo antes do retorno de Jesus. “Neste caso, o período de mil anos de paz e justiça precede a volta de Cristo”.

Por fim, há a leitura dos amilenistas, que rejeitam essa crença em um reinado físico terreno literal de Jesus.

“O Apocalipse é de um gênero literário surgido em um ambiente de perseguição, o que implicava uma necessidade de literatura cifrada, enigmática, que somente os iniciados entendiam”, explana Moraes.
“Não é necessariamente a descrição de fim do mundo. É um gênero literário e tem por finalidade trazer consolo aos perseguidos, como se eles dissessem que a situação estava muito ruim mas ‘veja só no que nós acreditamos: no final venceremos’.” Com texto do G1.