Do Correio- A cada nova atualização dos boletins epidemiológicos, a transmissão do vírus monkeypox – a varíola símia ou, ainda, varíola do macaco – tem mais impactos no Brasil. Em menos de 24 horas, o Ministério da Saúde confirmou a primeira morte pela doença no país, assim como os primeiros casos registrados em crianças.
O óbito de um homem em Uberlândia (MG), divulgado na sexta-feira (29), foi, inclusive, a primeira morte contabilizada fora do continente africano, onde a doença é endêmica, este ano. Desde janeiro, foram seis mortes por esse tipo de varíola no mundo – as outras cinco foram em países da África. Além disso, foram três diagnósticos de crianças infectadas – todas na cidade de São Paulo. Neste surto recente, há registros de dois casos de monkeypox em crianças nos Estados Unidos e um na Holanda.
O Brasil já é o sexto país com o maior número de ocorrências, segundo a plataforma Our World in Data, da Universidade de Oxford. Já são 1.066 infectados no país – a maioria (823) em São Paulo. Na Bahia, são 12 confirmações.
“O número de casos realmente está subindo. Não há uma previsão, no momento, de que esteja entrando em qualquer platô”, avalia a virologista Clarissa Damaso, chefe do Laboratório de Biologia Molecular de Vírus da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “A gente tem que ficar preocupado nesse ponto, mas não alarmado. A vigilância está fazendo o seu papel e o diagnóstico tem funcionado”, acrescenta.
Na semana passada, a Organização Mundial da Saúde declarou a monkeypox como uma Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional, assim como a covid-19 (desde 2020) e a pólio (desde 2014).
“É preciso informar a população para poder evitar. A vigilância epidemiológica tem que estar muito atenta para a lutar contra mais essa doença infecciosa. O Brasil tem que providenciar comprar a vacina ou produzir vacina”, enfatiza a epidemiologista Glória Teixeira, professora do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (Ufba).
Desde junho, a OMS confirmou que busca um novo nome para a doença. ‘Varíola do macaco’ tem sido criticada por especialistas que defendem um nome que não seja estigmatizante. No Brasil, muitos já adotam o nome em inglês ‘monkeypox’ (ainda que a tradução literal seja a mesma) ou varíola símia, assim como ‘vírus MPXV’ ou simplesmente ‘nova varíola’, até que a OMS anuncie o futuro nome.
Não é a primeira vez que a entidade faz esses movimentos: foi assim com a ‘gripe suína’, em 2010, que passou a se chamar Influenza A, e com as variantes da covid-19, que ganharam letras do alfabeto grego para evitar a conexão com as localidades onde foram primeiro detectadas.
Há uma preocupação até mesmo com os macacos. Em outras epidemias, como a da febre amarela, eram frequentes os relatos de macacos que foram mortos devido à desinformação. Houve quem achasse que os animais transmitiam a doença, sendo que eles também eram infectados por ela.
“Varíola do macaco é um nome falacioso. Como o vírus foi descoberto pela primeira vez em macacos, chamou-se de varíola do macaco, mas não é do macaco. Ele também é um hospedeiro”, completa Glória.
Para esclarecer algumas das principais dúvidas sobre a epidemia, a reportagem pediu que especialistas respondessem a 10 perguntas sobre monkeypox.
1. O que muda com a declaração da OMS de que a doença monkeypox é uma emergência de saúde pública de interesse internacional?
A partir de agora, é possível ter uma ação mais coordenada entre os países. Ou seja, dá para responder de maneira mais uniforme, de acordo com os protocolos da OMS, como explica a virologista Clarissa Damaso, da UFRJ.
“Para os países que já seguem o protocolo da OMS, talvez isso não faça tanta diferença, mas, para outros países, principalmente de baixa renda, faz diferença. Assim, a gente pode ter ações da OMS voltadas ao recrutamento de vacinas e de antivirais para esses países”, explica ela.
Todos os dados devem ser repassados à organização, o que implica dizer que há uma coordenação mais focada no surto sob liderança da OMS. “Esse alerta mundial vai servir de estímulo para que os laboratórios produzam mais vacina”, afirma a epidemiologista Glória Teixeira, do ISC/Ufba.
2. Como surgiu o vírus monkeypox?
Ainda que seja um ‘parente’ da varíola humana, o vírus monkeypox não é derivado dela. Como explica o pesquisador Maurílio Bonora Júnior, doutorando em Genética e Biologia Molecular na Universidade de Campinas (Unicamp), pouco se sabe sobre a origem desse vírus, assim como o seu reservatório na natureza ainda é desconhecido.
O primeiro registro do vírus é de 1958, em macacos, em um laboratório dinamarquês.
“O nome varíola do macaco, ou varíola símia (como tem sido chamado agora), vem daí. Mas o primeiro caso de infecção humana por ele aconteceu somente 12 anos depois, em 1970, em uma criança na República Democrática do Congo, na África”, explica Bonora Júnior.
Embora a origem seja incerta, a pesquisadora Mariene Amorim, doutoranda em Genética e Biologia Molecular no Laboratório de Estudos de Vírus Emergentes da Unicamp, reforça que trata-se de uma doença zoonótica – ou seja, uma doença infecciosa capaz de ser transmitida de animais para humanos. Até então, os casos de varíola símia notificados no mundo costumavam estar relacionados ao contato com animais infectados em áreas endêmicas.
“Porém, já temos muitos casos de transmissão entre seres humanos que não tiveram contato com animais contaminados nem que estiveram em regiões endêmicas na África”, diz ela, citando outros exemplos de zoonoses, como o ebola, a dengue, a zika, a febre amarela e a malária.
3. Em que o vírus da doença monkeypox é diferente do vírus da varíola humana?
A varíola humana, mais conhecida até então, foi erradicada em todo o mundo em 1980 – desde 1977, não há ocorrências de casos naturais -, enquanto sua ‘parente’ próxima ainda é endêmica em alguns países da África. A letalidade da varíola humana chegava a ficar até 30 e 40% dos infectados, enquanto a monkeypox tem sintomas mais leves.
“É uma doença que temos que evitar, mas é autolimitada (se resolve espontaneamente)”, diz a epidemiologista Glória Teixeira, do ISC/Ufba.
As lesões cutâneas são alguns dos sintomas mais conhecidos, mas não são os únicos. Há, ainda, febre, dor de cabeça, dor muscular, gânglios inchados, calafrios e sensação de exaustão.
Em geral, a pessoa se cura sozinha, depois de um período de duas a quatro semanas. É preciso esperar que toda a crosta das lesões desapareça, porque ela ainda tem o vírus. Somente após isso a pessoa pode sair do isolamento. Já existem antivirais licenciados para a monkeypox em casos graves nos Estados Unidos e na Europa.
Há dois subtipos do vírus da varíola símia. O primeiro é o que circula na África Central e tem letalidade de até 10%. Já o outro é o que circula no Oeste africano, com letalidade em torno de 1%, de acordo com a documentação das ocorrências naquela região. Todos os casos identificados até agora neste surto são do segundo subtipo, menos letal.
No relatório mais recente da OMS, divulgado no último dia 25, a entidade listou mais de 16 mil casos contabilizados no mundo, desde janeiro de 2022, e cinco mortes – todas no continente africano. Na última sexta-feira, com a confirmação do Brasil, o número de mortes no mundo em 2022 chegou a seis.
4. O Brasil está atrasado na compra de vacinas?
Entre maio e junho, alguns países começaram a aplicar o imunizante contra a varíola em alguns grupos populacionais. Esse é o caso de locais como o Canadá (que autoriza qualquer adulto com 19 anos ou mais com alto risco de exposição); dos Estados Unidos (permitida para contatos de pessoas infectadas e contatos presumidos) e Reino Unido.
Mas o Brasil, até então, não tem a vacina ou previsão para iniciar uma campanha. De acordo com a virologista Clarissa Damaso, da UFRJ, os países que já começaram a campanha de imunização só conseguiram dar início porque já tinham vacinas antes do surto começar.
“Elas faziam parte do estoque de biodefesa desses países contra a varíola”, diz.
Esses estoques estratégicos é que estariam sendo deslocados agora para o enfrentamento ao surto. O vírus da varíola humana tem potencial para ser usado como arma biológica, portanto, há um controle estrito para que não saia dos laboratórios onde é mantido.
O Ministério da Saúde anunciou que está “em tratativas” com fabricantes para comprar os imunizantes. Inicialmente, estão sendo negociadas 50 mil unidades de uma vacina cujo esquema é de duas doses.
5. Como funcionam as vacinas que estão sendo usadas para o monkeypox em alguns países?
Os imunizantes que já estão sendo aplicados em alguns países foram desenvolvidos, inicialmente, para a varíola humana. Segundo o pesquisador Maurílio Bonora Júnior, da Unicamp, a semelhança genética entre o vírus monkeypox e o vírus da varíola humana faz com que as vacinas projetadas para a segunda funcionem para a primeira também.
“Em algumas partes do genoma, essa similitude chega a 96%. Assim, muitas das partes que o sistema imune ataca no vírus da varíola humana apresentado pela vacina também estão presentes (ou é bem parecido) na monkeypox, o que possibilita essa proteção contra ambas”, explica.
Atualmente, existem duas vacinas aprovadas pelo FDA (a agência reguladora dos Estados Unidos). Um dos imunizantes é o ACAM2000, do laboratório Sanofi – uma vacina de segunda geração, ou seja, que usa fragmentos de um vírus. Como destaca o pesquisador, ela foi desenvolvida a partir de um clone do vírus usado na vacina original contra a varíola, que chegou aos braços de gerações anteriores.
“Nessa vacina é aplicado o vírus vivo que causa a varíola bovina, capaz de infectar e se multiplicar em nossas células, mas sem causar uma doença grave”, diz. A eficácia dela contra o monkeypox pode chegar a 85%.
Já a vacina Imvanex ou Imvamune foi desenvolvida pelo laboratório Bavarian Nordic. Ao contrário da ACAM2000, o protocolo dela é de duas doses com intervalo de quatro semanas. O imunizante usa um vírus da varíola bovina alterado, o que significa que não tem capacidade de se replicar.
No entanto, como pondera a pesquisadora Mariene Amorim, da Unicamp, a ACAM2000 tem algumas limitações devido a efeitos colaterais em alguns públicos, como gestantes, pessoas imunossuprimidas e com doenças cardíacas ou dermatites.
“A Imvanex ou Imvamune por outro lado, utiliza uma partícula viral geneticamente modificada que não é capaz de se replicar de forma eficiente em nossas células, sendo mais segura para alguns grupos de pessoas, e sua eficácia foi observada em estudos com modelos animais”, diz.
6. Quem poderá se vacinar?
A OMS desaconselhou a vacinação em massa para controlar o surto de monkeypox. Em geral, o imunizante é indicado a pessoas com alto risco de exposição à doença.
Entre elas, estão quem teve contato com pessoas infectadas (de preferência dentro de quatro dias após a primeira exposição ao vírus) e profissionais de saúde em situação de risco – desde aqueles que estão no ambiente hospitalar até trabalhadores de laboratórios de análises clínicas que têm testes para a nova varíola. Além disso, também são incluídos homens gays, bissexuais e outros homens que fazem sexo com homens (HSH).
O Ministério da Saúde não respondeu sobre os grupos que devem receber a vacina.
7.Como tem sido o contágio?
É possível ser infectado tendo contato com o vírus (com animais, pessoas ou materiais contaminados) e pelo contato direto com fluidos e secreções respiratórias. A transmissão respiratória é considerada uma forma clássica de contágio de monkeypox. Ocorre através de gotículas grandes – no caso, a saliva.
“Mas o contato pele a pele é prioritário na transferência, ao tocar na lesão. Claro que se as lesões estão na área genital, a transferência vai ser para outra região genital, que é onde terá o toque”, explica a virologista Clarissa Damaso.
Por isso, para a prevenção, é importante evitar contato próximo com pessoas com sintomas, incluindo as erupções. Não se deve tocar ou compartilhar objetos com pessoas infectadas durante o período de manifestação dos sintomas. Lavar as mãos e usar álcool em gel também são medidas importantes.
Antes desse surto atual, segundo o pesquisador Maurílio Bonora Júnior, da Unicamp, o crescimento das ocorrências de monkeypox vinha acontecendo desde a década de 1980. Uma das razões apontadas por especialistas para isso é justamente a queda no número de imunizados contra a varíola humana, já que a vacinação contra essa doença parou nesse período.
“Como as vacinas contra a varíola humana geram uma proteção contra a varíola símia, a parada com a vacinação (devido a erradicação da varíola humana) possibilitou que as novas gerações não possuíssem essa proteção e ficassem mais suscetível ao vírus monkeypox”, diz.
Além disso, ele destaca outros aspectos, como o avanço sobre áreas silvestres, que faz com que crianças e adultos tenham contato com animais que são reservatórios do vírus. Isso provoca o chamado ‘spillover’ – quando um vírus que infecta animais passa a infectar humanos. É possível citar, ainda, o desmatamento; guerras, conflitos e situações de pobreza que levam à migração para áreas de floresta; baixa vigilância epidemiológica ou mesmo a melhoria das ferramentas e da capacidade de diagnóstico.
8. O quanto o vírus monkeypox consegue se replicar? E o quanto as mutações são frequentes?
O vírus da varíola símia é de DNA – considerado mais estável do que os de RNA, que sofrem mais mutações. O Sars-cov-2, da covid-19, e o Influenza, da gripe, são de RNA. Além disso, como explica o pesquisador Maurílio Bonora Júnior, da Unicamp, alguns vírus de DNA têm mecanismo de reparo próprios, o que ajuda a diminuir mutações que poderiam ocorrer.
“Apesar de já terem identificado diversas mutações no MPXV que está se espalhando pelo mundo, não sabemos ainda se foram essas mutações que permitiram sua maior transmissão, ou mesmo quando essas mutações aconteceram”, pondera.
O vírus pode infectar células dos sistemas imune e respiratório, além de mucosas, da pele e de outros órgãos, como destaca a pesquisadora Mariene Amorim.
“Os poxvirus da família do monkeypox, após o primeiro contato com as nossas células, vão para os linfonodos em seguida para a corrente sanguínea, podendo chegar em outros órgãos, como a nossa pele, onde são formadas as lesões características da doença”, acrescenta.
9. A doença monkeypox é uma Infecção Sexualmente Transmissível (IST)?
Um estudo publicado no New England Journal of Medicine na semana passada avaliou 528 pacientes com monkeypox e constatou que 95% das infecções foram através do contato sexual. No entanto, ela não é considerada uma Infecção Sexualmente Transmissível (IST) pela OMS.
Alguns trabalhos científicos já detectaram DNA do vírus em fluidos seminais. Porém, como pondera a virologista Clarissa Damaso, isso não significa que o vírus está ativo. “Não quer dizer que tem vírus com capacidade de infectar células. Não foi demonstrado ainda se há ou não esses vírus ativos”, completa.
10. Que estratégias estão sendo adotadas para conter o avanço da nova varíola?
Casos de monkeypox na Bahia devem ser notificados à Secretaria da Saúde do Estado (Sesab), para investigação e controle. Segundo a Sesab, o Centro de Informações Estratégicas em Vigilância em Saúde do Estado (Cievs) tem divulgado comunicados de risco, formulário virtual para notificação e promovido palestras com infectologistas.
O órgão recomenda que qualquer pessoa com sintomas característicos da doença deve procurar uma unidade de saúde para ser avaliada. Se for classificada como caso suspeito, amostras devem ser coletadas e enviadas ao Laboratório Central (Lacen). O paciente deve passar por medidas como isolamento e monitoramento de quadro clínico.
“Ressaltamos que qualquer unidade de saúde, seja da atenção primária à saúde ou média complexidade, pública ou privada, pode realizar a coleta do exame para monkeypox (coleta da lesão) e das doenças que são de diagnóstico diferencial (sangue total)”, informou a secretaria.
Em Salvador, a recomendação da Secretaria Municipal da Saúde (SMS) é que os pacientes busquem uma unidade de urgência e emergência. Na rede municipal, são 16 postos de urgência funcionando em regime 24 horas.
O Ministério da Saúde não respondeu quais são as estratégias a nível federal para o combate à doença. Esta semana, o órgão inaugurou um Centro de Operação em Emergências (COE) para acompanhar a nova varíola