Na Bahia, pessoas ligadas a diversos segmentos se dividem acerca do projeto de lei que legaliza os jogos de azar no Brasil. Representantes de agência de turismo, de associação de auditores fiscais, de religiões, do governo e da área de saúde mental têm aumentado suas preocupações ou ansiado pela aprovação do PL.
O texto foi aprovado na Câmara na semana passada por 246 votos a 202. Posteriormente, os destaques foram reprovados pelos deputados. Se o PL 442/1991 passar pelo Senado e for sancionado pelo presidente Jair Bolsonaro (PL) deixarão de ser tratados como ilegais modalidades como jogos de cassino, de bingo e de vídeo bingo, jogo do bicho e apostas em corridas de cavalo (turfe).
Saúde mental
Para o psiquiatra e coordenador do Programa de Dependência a Jogos e Novas Tecnologias da Clínica Elpis, Mateus Freire, as consequências da aprovação do PL 442/1991 são incertas.
“Existem alguns estudos feitos em países que legalizaram os jogos. Em alguns deles, como Nova Zelândia, Austrália, alguns países europeus, Estados Unidos e Canadá, houve uma avaliação da prevalência dos transtornos do jogo patológico, o chamado vício ou dependência de jogos de azar. E a maioria dos estudos mostra que há um aumento da prevalência desse transtorno quando existe a legalização dos jogos”, disse o psiquiatra, que enxerga que o primeiro passo para antes de legalizar deveria ser o investimento em pesquisa sobre o assunto para a partir daí se tomar uma decisão.
“Inclusive isso é uma coisa que me chama a atenção. Talvez a celeridade em fazer a legalização, proceder com a legalização de jogos de azar, sendo que a gente sabe muito pouco sobre como é distribuído o transtorno de jogo patológico no Brasil”. Como aponta no projeto de lei, a primeira tentativa de legalizar os jogos de azar no país foi em 1991. A tentativa atual tem o deputado Felipe Carreras (PSB-PE) na relatoria.
Embora modalidades de jogos como cassino estejam proibidas, Mateus Freire trabalha em sua clínica com pacientes que têm a vida afetada por apostas online, que são possíveis de se jogar. “O transtorno do jogo patológico se associa a graves perdas financeiras, prejuízos à saúde mental, incluindo depressão e transtornos ansiosos, aumento do risco de suicídio, rupturas na vida social, familiar e laboral. Algumas pessoas chegam ao extremo de cometer atos ilegais para manter o comportamento compulsivo de jogo”, disse o psiquiatra.
Turismo
A expectativa do setor de turismo, no entanto, é de que a legalização dos jogos de azar traga benefícios para o Brasil e para a Bahia. O CEO da SB Travel, Vítor Liborio, enxerga que destinos turísticos vendidos pela agência, como Las Vegas, Punta del Este e os cruzeiros, embora tenham os jogos de azar incluídos como atração, se destacam por proporcionar entretenimento de maneira geral. “Eles [destinos turísticos com cassino] têm o mesmo apelo, que é o do ‘aqui pode, faça sua festa, venha se entreter’. O apelo desses lugares é pela libertação”.
Vítor enxerga que, com uma forte fiscalização, a legalização dos jogos de azar no Brasil pode ser muito benéfica para o turismo nacional. “Ainda mais com um destino como Bahia, que combina muito com esse estado de libertação e de entretenimento. Obviamente, uma libertação vigiada, de pode, se liberte, mas não é aquilo de tudo é permitido e passe por cima de tudo, porque não é assim. A gente tende a receber muita gente de fora, também por ser destino de praia, dentro de resort”.
Expectativa semelhante tem o secretário estadual de Turismo, Maurício Bacellar, que não enxerga necessidade de na Bahia ser construída uma “Las Vegas”, ou seja, que se comece do zero um local destinado ao cassino. “Como a Bahia tem uma grande estrutura hoteleira, e essa estrutura está dispersa por várias regiões do estado, nós vamos poder ter vários pontos com os jogos. Nada artificial precisará ser feito, beleza natural temos em abundância”.
Limite de resort com cassinos por área
Para abrigar um cassino, um resort deve ter pelo menos cem quartos de hotel de luxo, bares, restaurantes, locais de reuniões e centros de compras. A área do cassino não deve exceder 20% do total do complexo.
São Paulo é o único estado que poderá ter três cassinos em resorts, por ser o único com mais de 25 milhões de habitantes. Estados com população entre 25 e 15 milhões de habitantes, que é o caso da Bahia, poderão ter até dois cassinos em resorts, enquanto nos estados com população menor que 15 milhões de habitantes será permitido no máximo um cassino em resort. É proibido que um mesmo grupo econômico ganhe mais de uma concessão em cada estado para operar um cassino em um resort.
Espiritualidade
A resistência ao PL é grande na Câmara por parte de alguns grupos, como a bancada evangélica. Do ponto de vista espiritual, porém, os cristãos não são os únicos que não enxergam com bons olhos a legalização dos jogos de azar.
“Eu rogo a Deus e aos orixás que o Senado se mantenha firme e não abra espaço para esse tipo de jogos aqui no Brasil”, disse o Bàbá Egbê da Casa Ilê Axé Oxumare, Leandro Encarnação da Mata. “Eu sou totalmente contra. E o candomblé e nós, os líderes da Casa de Oxumare, mantem a mesma posição. Uma vez que esses jogos fazem essas pessoas terem a intenção de ganhar um dinheiro, mas se endividam. É uma máquina muito suja”.
Dados da Fecomércio divulgados no mês passado apontaram que a inadimplência em Salvador passou de 30% no final de 2021. A preocupação com a saúde financeira, para líderes espirituais, está aliada também à questão moral. Diferente do cristianismo, porém, o candomblé não traz a questão do “pecado” como centro do problema.
Servidores da Receita
Entre os que se opõe à legalização dos jogos de azar, além de profissionais de saúde mental e religiosos, estão os servidores públicos que serão responsáveis pela fiscalização das modalidades, caso estas sejam legalizadas. O presidente da Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal (Anfip), Wilson Romero, diz ter preocupação com o controle do volume de recursos investidos. “Temos uma estrutura de controle muito precária em todos os órgãos, tanto na segurança pública, quanto no Ministério Público e na Receita Federal, a quem caberá também fiscalizar tudo isso”.
A proposta na Câmara aponta que será da responsabilidade do Ministério da Economia não só a fiscalização e supervisionamento da exploração dessas atividades no país, mas também a formulação de políticas para organizar o mercado de jogos e de apostas. A Receita Federal é um órgão da pasta comandada por Paulo Guedes.
Parlamentares
Um dos deputados que votou contra o PL, Jorge Solla (PT-BA) diz enxergar que a proposta está dentro de um contexto que envolve uma série de privatizações. “O projeto visa atender os interesses de grupos econômicos que obviamente financiam um conjunto importante da política brasileira e tentam transformar isso aí em um mercado lucrativo pra eles. E eles não vão parar por aí”, alertou o parlamentar petista.
“Já está tudo combinado. O projeto vai ser aprovado no Senado e o presidente Bolsonaro vai vetar para satisfazer o eleitorado evangélico que é contra o jogo, mas tudo isso já está combinado com o centrão que vai derrubar o veto”, afirmou o parlamentar. “Eles sabem que Bolsonaro não será reeleito e estão correndo para aprovar as pautas de interesse deles”, completou.
Solla não enxerga que a geração de empregos justifique a aprovação do projeto de lei. “Colocaram alíquotas menores do que a arrecadação dos produtos das cestas básicas como feijão, arroz, macarrão… Você vai pagar menos imposto no cassino do que em um dos produtos da cesta. Isso traduz os interesses que estão por trás”, disse.
Segundo o texto, a alíquota fixa sobre a operação das apostas é de 17%, enquanto é fixa em 20% a incidência de Imposto de Renda sobre prêmios a partir de R$ 10 mil. O dinheiro arrecadado será distribuído entre União, estados, Distrito Federal e municípios e está previsto que seja usado para financiar políticas públicas como prevenção de desastres naturais e reconstrução de áreas de risco.
Colega de Solla na Câmara, o deputado João Carlos Bacelar (Podemos-BA) tem um posicionamento oposto ao do conterrâneo. O parlamentar do Podemos usou o Jogo do Bicho como exemplo de que a legalização é urgente e apenas formaliza uma situação que já existe. “O tempo para aprovar é face à hipocrisia reinante no Brasil. São mais de 80 anos proibindo [o Jogo do Bicho] e eu pergunto: os jogos foram extintos? Não. Cresceram”.
Bacelar alega que 20 mil empregos, de pessoas que já trabalham de maneira informal para o jogo do bicho, poderão ser legalizados ou formalizados na Bahia, além da possibilidade de o estado arrecadar recursos que poderiam ser revestidos para segurança, saúde, educação e no desenvolvimento de diversas outras atividades econômicas que estão associadas à cadeia produtiva do jogo.
Posicionamento semelhante ao de Bacelar tem o senador Angelo Coronel (PSD-BA), que disse já saber o que fazer quando o projeto de lei chegar na casa. “Sou favorável e às vezes fico me perguntando: quem é contra significa que está a favor da clandestinidade? Estou torcendo que o PL venha redondo para o Senado e que a gente possa aprová-lo o mais rápido possível, para que possa haver a regulamentação e com isso acabar a clandestinidade”, opinou Coronel.
Pelo curso regular das proposições, a tramitação no Congresso também passa pelo Senado Federal até chegar às mãos do presidente Jair Bolsonaro (PL), que pode sancionar ou não. Uma vez aprovado pela casa de origem, o texto segue para a casa revisora, onde também deverá ser avaliado por Comissões e pelo Plenário. Se alguma das Casas revisoras alterar ou emendar o texto do projeto, ele volta para que a outra Casa o analise novamente.
A origem do jogo do bicho
Criado em 1892 pelo barão João Batista Viana Drummond, fundador do Jardim Zoológico do Rio de Janeiro, o jogo do bicho tinha o objetivo de atrair mais gente para o zoológico, compensando o corte de verbas do governo, que mantinha o lugar.
Para alimentar os animais, Drummond mandou imprimir o desenho de 25 bichos nos ingressos. Pontualmente às 17 horas, sorteava um deles. Quem tivesse a figura vencedora ganhava 20 vezes o valor do ingresso.
No início, cada visitante do local teria direito a receber somente um bilhete com a imagem de um bicho. Com a demanda, a partir de 1894, a compra de ingressos deixou de ser limitada. Daquele ano em diante, a ideia originalmente brasileira deixou de ser um simples sorteio e se tornou a maior loteria ilegal do mundo.
Em 1946, passou a ser tratado como contravenção na forma do art. 50 do Decreto-Lei nº 3.688, de 1941 – Lei das Contravenções Penais. A punição para quem estabelecia ou explorava jogos de azar em lugar público ou acessível ao público, mediante o pagamento de entrada ou não, era pena de prisão simples, de três meses a um ano, e multa de dois a quinze ‘contos de réis’ – atualizada pela lei 13.555/2015 para R$ 2 mil a R$ 200 mil – estendendo-se os efeitos da condenação à perda dos móveis e objetos de decoração do local.
O período de maior fama do jogo do bicho se deu na década de 80: com os lucros exorbitantes das apostas, os ‘bicheiros’ se uniram com o crime organizado. Eles lançaram tentáculos em pelo menos seis áreas: tráfico de drogas e de armas, especulação imobiliária, prostituição, jogos eletrônicos e transporte clandestino, com peruas e lotações.
Mesmo proibido, o bicho continua até hoje com três sorteios diários.
Veja como votaram os deputados baianos PL 442/1991:
Abílio Santana (PL-BA) – não
Adolfo Viana (PSDB-BA) – sim
Alex Santana (PDT-BA) – não
Alice Portugal (PCdoB-BA) – sim
Arthur O. Maia (União-BA) – sim
Bacelar (Podemos-BA) – sim
Cacá Leão (PP-BA) – sim
Claudio Cajado (PP-BA) – sim
Daniel Almeida (PCdoB-BA) – sim
Elmar Nascimento (União-BA) – sim
Félix Mendonça Jr (PDT-BA) – sim
Igor Kannário (União-BA) – sim
João C. Bacelar (PL-BA) – sim
Jorge Solla (PT-BA) – não
José Nunes (PSD-BA) – sim
José Rocha (PL-BA) – sim
Joseildo Ramos (PT-BA) – não
Leur Lomanto Jr. (União-BA) – sim
Lídice da Mata (PSB-BA) – não
Marcelo Nilo (PSB-BA) – sim
Márcio Marinho (Republicanos-BA) – não
Mário Negromonte Jr (PP-BA) – sim
Otto Alencar (PSD-BA) – sim
Pastor Isidório (Avante-BA) – não
Paulo Azi (União-BA) – sim
Paulo Magalhães (PSD-BA) – sim
Professora Dayane (União-BA) – não
Raimundo Costa (PL-BA) – sim
Ronaldo Carletto (PP-BA) – sim
Sérgio Brito (PSD-BA) – sim
Tia Eron (Republicanos-BA) – não
Tito (Avante-BA) – sim
Uldurico Junior (PROS-BA) – sim
Valmir Assunção (PT-BA) – não
Waldenor Pereira (PT-BA) – não
Autor: Lucas Franco e Luciano Barreto/ATARDE