A primeira vez que me fiz esse questionamento, eu atuava como dirigente de educação do município de Planaltino, estado da Bahia, em 2009. Em uma conversa com o então prefeito, Zeca Braga, discutíamos que ações poderíamos desenvolver para melhorar a qualidade da educação das nossas crianças, adolescentes e jovens. Zeca tinha a experiência de ter sido secretário de educação e eu conjuntamente com ele atuei como Coordenador Pedagógico das Escolas do Campo.
Sempre fomos muito sensíveis quanto as questões socioeconômicas do nosso contexto, do contexto da nossa comunidade, das nossas escolas, e tínhamos consciência do quanto isso impactava também nos resultados educacionais. Sensíveis sobre o quanto a escola tinha e ainda tem dificuldades de compreender os reflexos deste contexto na escola. Tanto que nossa primeira ação em janeiro de 2009, foi realizar um mutirão de matrículas, convidando todas as professoras e professores para irmos até as casas realizar a matrícula. Foi uma experiência fantástica. Formamos grupos de professoras e professores, e fomos de casa em casa na sede e no campo para efetuar matrículas.
Contudo, nas entrelinhas, nosso intuito era também aproximar as professoras e professores da realidade dos nossos estudantes e suas famílias. Muitas vezes, atuamos anos em uma determinada escola, e achamos que conhecemos a realidade de nossos estudantes, o que não é uma verdade. Nesta experiência, ouvimos relatos de professoras, emocionadas, dizendo que não imaginavam que determinado estudante vivia em determinada realidade. Que não tinha ideia da rotina que era para alguns estudantes chegar à escola. Encontramos diversas situações, encontramos criança de 12 anos que nunca tinha ido à escola, que vivia escondida em casa por ter uma deficiência. Essa experiência trouxe um outro olhar para muitas professoras e professores na sua prática na escola.
Portanto, tínhamos a clareza que nosso papel a partir do trabalho em educação, era contribuir com a superação desta realidade de desigualdade social. No município, já tínhamos tido algumas experiências pontuais de uma ou outra atividade de contraturno para alguns estudantes. Na conversa, dialogávamos sobre quais atividades aqueles que estudam em escolas particulares tem acesso, sobretudo depois que saem da escola. Ainda não tínhamos a compreensão da inteireza do conceito de Educação Integral, mas tínhamos a clareza de que o acesso a música, as atividades físicas e a arte contribuíam muito para o desenvolvimento. Para nós, ampliar o tempo dos estudantes na escola precisava garantir acesso à outras atividades que estivessem articuladas dentro de um projeto político-pedagógico de cada escola.
A ampliação deste diálogo com nossa equipe, resultou no Projeto Craques da Cidadania. Surgia o primeiro Projeto de Educação Integral do município de Planaltino. O Projeto surgiu das necessidades de nossa realidade concreta e do diálogo ampliado com a equipe, posteriormente as escolas e a comunidade. Mas, tínhamos desafios, os mesmos que perduram até hoje. Quais profissionais vão atuar? Como serão remunerados? Com qual recurso iremos comprar os materiais necessários? Em que espaços essas atividades vão funcionar?
Uma questão muito cara para mim era o perfil dos profissionais que iriam atuar. Começamos a fazer um levantamento das possibilidades de atividades e de profissionais. O município já tinha um professor de Karatê, tinha um guitarrista fera, músico profissional que poderia dar aula de violão, mas precisávamos de outros profissionais, precisávamos ofertar outras oportunidades. Buscamos através de um processo seletivo contratar profissionais formados em Educação Física, e conseguimos excelentes profissionais. Não me lembro agora ao certo, mas acho que foram 6 profissionais, que se juntaram a nós na oferta de inúmeras atividades. Até psicomotricidade para educação infantil conseguimos ofertar. Aí vieram outros profissionais para Capoeira, Percussão, Flauta, Dança e Fanfarra. O projeto contava com dois coordenadores formados em Educação Física que trabalhavam estreitamente com a Diretoria Pedagógica da Secretaria e as Escolas. Essa turma, tinha encontros semanais de formação continuada e planejamento.
Quando chegou o Mais Educação, nós já tínhamos nossa experiência, e tanto o Mais Educação como o Projeto Segundo Tempo, e os Editais de Cultura eram programas que nós fazíamos a adesão para potencializar o nosso Projeto. Como exemplo, com os Editais de Cultura nós conseguimos criar grupos de recitais a partir das escolas. Esse é um movimento que muitos municípios precisam compreender. O município precisa ter o seu planejamento, precisa ter a sua política local, e os programas e projetos externos precisam ser adequados as necessidades locais, e não serem seguidos cegamente.
As atividades ofertadas, ocupavam diversos espaços da cidade. Estávamos nós construindo uma cidade educadora sem essa consciência. E, nós priorizamos essa oferta também para as escolas do campo. Os profissionais de educação física, para muito além das modalidades esportivas de quadra, campo, realizavam um trabalho extraordinário com atividades das mais diversas independentemente de espaço. Aos poucos, fomos vendo a cidade ficando movimentada, crianças, adolescentes e jovens transitando para lá e para cá entre as atividades. Professoras e professores realizando atividades nas praças, em canteiros, realmente, erámos uma Cidade Educadora.
Ainda quanto aos profissionais, claro que alguns não tinham curso de licenciatura, como por exemplo os professores de Karatê, Capoeira, Flauta, Dança e Violão. Mas, no caso do Karatê e da Capoeira, tinham a graduação necessária dentro da modalidade para atuarem como professores e os demais tinham o saber de vida em sua área de atuação. Para mim não era justo eles receberem um salário menor do que os demais professores contratados, e, não me perguntem como, nós fizemos questão de garantir a mesma remuneração.
Nos preocupava muito ofertar atividades com qualidade e que os estudantes pudessem querer participar. Não podia ser por obrigação, mas as atividades precisavam ser vistas como oportunidades de desenvolvimento. A participação nas atividades não era obrigatória, era feita por inscrição para quem tivesse interesse, e os estudantes podiam participar de mais de uma atividade. Chegamos a ter mais da metade dos estudantes da rede engajados nestas atividades. Como resultado, em 2010, iniciamos formalmente a primeira escola de educação integral em tempo integral do município, no campo, no Povoado de Lagedinho.
A ampliação de mais tempo dos estudantes na escola, deve ser precedida da pergunta para quê? E hoje, compreendo que a resposta a essa pergunta não pode ser construída sem a participação efetiva dos estudantes, da comunidade escolar. Não pode ser uma determinação do poder público. Deve sim ser uma iniciativa, dialogada, construída de forma participativa. E aí vem outra inquietação, e como efetivamente, ampliar esse tempo sem construir duas escolas em uma? A escola do ensino dito regular e a escola do contraturno. A escola chata e a escola legal. A possibilidade de ampliação do tempo escolar precisa servir para superação das nossas inquietações históricas. Deve partir de reflexões sobre os desafios, as demandas do cotidiano de cada escola.
Tenho vivido em busca de conhecer as inúmeras experiências de escolas que tem conseguido romper com essa dicotomia de duas escolas, com a fragmentação curricular tão enraizada em nossas práticas, com o instrucionismo e a pressão por resultados das avaliações externas. E foi nesta busca, que nos dias 17, 18 e 19 de janeiro de 2024, eu e minha família, fizemos uma Viagem Pedagógica de imersão em Caraíva, Porto Seguro. Um Encontro de Escolas Transformadoras. Eu não tinha nenhum planejamento para viajar neste período de férias. Nos meus planos estava se dedicar com contribuições no detalhamento pedagógico junto a equipe da Universidade Federal da Bahia (UFBA) no Projeto de Formação para o Programa Escola em Tempo Integral, que atenderá 1760 municípios do nosso Nordeste.
No entanto, em 8 de janeiro, ao acompanhar a cartinha diária escrita pelo Prof. José Pacheco, eis que me deparo com o anúncio da realização do Encontro de Escolas Transformadoras do Brasil, em Caraíva, na Bahia. Ai a curiosidade foi aguçada por essa inquietação cotidiana de que precisamos avançar nas nossas escolas públicas com práticas de ruptura com o instrucionismo e com a fragmentação curricular e pedagógica. Fui pesquisar mais sobre o evento, conversei com a família, e enfim, decidimos ir ao Encontro, sobretudo com o intuito de escutar, conhecer as experiências pedagógicas destas escolas.
Foi efetivamente um encontro de com-versações pedagógicas. Um encontro fora de sala de aula, sem pautas definidas, sem palestras. Muito, mais muito diálogo a partir das experiências, das vivências, das inquietações, dos sonhos, dos sentimentos, dos afetos. Um encontro verdadeiramente democrático e participativo. Ainda estou processando, refletindo sobre tudo que senti, ouvi e vivi nestes três dias. Estou me autoavaliando. Sai muito mais fortalecido na compreensão de que mais que possível, é urgente fazer uma escola pública humana, emancipacionista, inclusiva, acolhedora, transformadora. Mas, para isso, precisamos avançar na compreensão das rupturas que precisamos fazer no desenho atual de escola que temos. Precisamos de coragem para isso.
A nossa própria legislação educacional é nossa aliada neste desafio, pois é extremamente aberta a formas diversas de organização da educação escolar. Inclusive, muitas das práticas que temos cristalizadas em nossas escolas, sequer estão nas nossas Diretrizes Educacionais, um pequeno exemplo, é essa compulsão por classificação através de notas na avaliação escolar. Precisamos fortalecer a autonomia administrativa e pedagógica das nossas escolas (isto é Lei), das nossas comunidades, das educadoras e educadores no fazer pedagógico. Romper com as caixinhas, com a cultura do control C e control V de modelos que nada dialogam com as nossas realidades, com os treinamentos disfarçados de formação, com as verdades ditas por palestrantes diplomados que estão tão distantes do cotidiano escolar.
Que possamos nos abrir para novas vivências, para novas experiências que efetivamente torne nossa Escola, Pública! Pública no sentido sobretudo de garantir o direito de todas e todos à aprendizagem. Que nos aproximemos mais das inúmeras educadoras e educadores transformadores que temos nas nossas escolas! Em nossas redes, precisamos valorizar mais as experiências transformadoras, disruptivas que tem acontecido. Precisamos valorizar mais as nossas experiências disruptivas.
Que a ampliação do tempo escolar, não seja guiada por uma corrida de control C control V de diretrizes e propostas pedagógicas com intuito de cumprimento de determinações legais e de prazos burocráticos, e que possamos verdadeiramente repensar nossos projetos político-pedagógicos a partir das nossas comunidades escolares, tendo como base os princípios e dimensões de uma Educação Integral que possa garantir o desenvolvimento pleno da pessoa humana alinhado sim a um projeto de sociedade socialmente justa. Que desconfiemos de qualquer proposta simplista e praticista de implantação de educação integral, e que compreendamos que o processo é formacional e tem que ser dialógico. Ao poder público, cabe sim garantir todas as condições para que esse processo de construção ocorra efetivamente, tanto com os recursos necessários (que ainda são insuficientes), quando com a assistência técnica que respeite as especificidades locais, regionais, a cultura e a história de cada povo e das diferentes educações.
A oferta de uma Educação Integral, a princípio, perpassa por uma decisão política daquelas e daqueles que estão em funções de gestão, mas não é determinante. Sem o envolvimento da comunidade escolar, a decisão externa não prospera. Muito mais do que a decisão verticalizada, a decisão consciente da comunidade escolar em fazer uma educação humanista, de perspectiva emancipacionista é fundante neste processo, e ela tem a força inclusive de impactar nas decisões políticas externas. Por isso, a Educação Integral deve ser planejada a partir da sistematização do projeto político-pedagógico de cada escola.
Renê Silva, Doutorando em Educação pela Universidade Federal da Bahia. Pedagogo, Especialista em Gestão Educacional, Especialista em Fundamentos Sociais e Políticos da Educação e Mestre em Educação pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. Atua como Coordenador Pedagógico da Escola Municipal Clemente Mariani, município de Nova Itarana, estado da Bahia.