Não é por acaso que os evangélicos continuam provocando estragos na avaliação do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), como mostrou o Datafolha, e que a frente parlamentar desse segmento religioso incomoda o atual governo no Congresso. Se, no passado, políticos e pastores evangélicos adotavam uma postura pragmática, aproximando-se inclusive de gestões do PT, agora eles têm um novo motivo para cerrar fileiras com a oposição: a transformação da política brasileira em uma guerra cultural.
Grosso modo, a guerra cultural reflete uma divisão profunda entre progressistas e conservadores a respeito das noções de moralidade. Na prática, isso se traduz em disputas sobre legalização do aborto, direitos LGBTQIA+, feminismo, igualdade de gênero, orçamento da cultura e conteúdo da educação nas escolas, entre outros temas. De acordo com o cientista político Guilherme Casarões, esse é um dos principais legados do bolsonarismo, com prováveis implicações de longo prazo mesmo que o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) deixe a liderança do movimento.
“É difícil especular o que vai ser de Bolsonaro daqui para a frente, mas o bolsonarismo, mesmo que mude de nome, vai ter um impacto muito grande na maneira como o país se organiza politicamente”, diz Casarões, que é professor da Escola de Administração de Empresas da FGV-SP. “Essa maneira bolsonarista de pensar o país e a política está muito pautada pela noção de nacionalismo cristão. Não é o patriotismo militarista, ou não se resume a isso; tampouco é a visão religiosa sectária. É a fusão dessas duas coisas”, afirma.
Antes tudo e pior ainda, as lideranças religiosas são quem mais compartilham mentiras na internet, as fakes news sobre assuntos importantes para enganar fies em falsas causas de conduta. É sempre usando a Igreja para acusar os partidos e políticos que não gostam, fazendo das pessoas marionetes da fé.
Esse nacionalismo cristão, segundo Casarões, se traduz na ideia de que as respostas para todos os problemas sociais do país estão numa agenda alinhada a valores religiosos.
“A isso corresponde a luta contra o comunismo em suas manifestações políticas e culturais, o combate ao que eles chamam de ideologia de gênero, o enfrentamento do que eles consideram depravação moral da sociedade”, diz o cientista político, que é coordenador do Observatório da Extrema Direita.
A análise desse emaranhado entre política, fé e patriotismo levou Casarões a propor um novo conceito para entender líderes como Bolsonaro: populismo religioso de direita radical.
Em parceria com Ricardo Barbosa Jr., do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília, Casarões desenvolveu a ideia no artigo “Statecraft under God: radical right populism meets christian nationalism in Bolsonaro’s Brazil” (Estadismo em nome de Deus: populismo de direita radical encontra o nacionalismo cristão no Brasil de Bolsonaro).
Publicado no começo deste ano na revista científica Millennium, uma das mais tradicionais na área de relações internacionais, o texto justifica a criação do conceito como uma subcategoria do populismo de direita radical, um fenômeno bastante conhecido.
Populistas de direita radical são líderes políticos ou grupos ideológicos que defendem bandeiras como nacionalismo, racismo, xenofobia e autoritarismo.
São populistas porque, estimulando uma divisão permanente da sociedade entre uma elite pintada como antinacional e o povo, se atribuem o direito de falar em nome dessa maioria, ainda que para isso precisem passar por cima das instituições.
São de direita radical, e não de ultradireita (duas variantes da extrema direita), porque não rejeitam a democracia logo de cara; ao contrário, participam do processo eleitoral para chegar ao poder. Uma vez eleitos, contudo, desvirtuam as regras do jogo para instaurar um governo de perfil autoritário, embora não necessariamente ditatorial.
O populismo de direita radical costuma ser usado para descrever políticos como Marine Le Pen (França), Boris Johnson (Reino Unido), Donald Trump (EUA) e Bolsonaro, entre outros.
Mas, para Casarões e Barbosa, é possível refinar esse conjunto ao prestar mais atenção no elemento religioso. A mobilização da fé, dizem os dois pesquisadores, é central para oferecer não só uma base de apoio sólida mas também recursos materiais, estruturas de campanha e narrativas ideológicas.
Grupos religiosos, além disso, ajudam na sustentação do governo e, em troca, desfrutam de participação institucional sem precedentes e de oportunidades inéditas para reorganizar as relações entre Estado e sociedade em termos eclesiásticos.
Le Pen e Johnson não entram no subconjunto dos populistas religiosos de direita radical. Trump entra, assim como Viktor Orbán (Hungria), Narendra Modi (Índia) e, claro, Bolsonaro.
“A extrema direita [que inclui direita radical e ultradireita] se baseia muito no afeto. Ou seja, não é uma construção política racional como um todo. Ela se abastece muito do medo: medo do outro, medo do diferente. E ela converte esse medo em ódio, que tem efeito político poderoso”, diz Casarões à reportagem.
“Ela fala para grupos ressentidos da sociedade, seja pela questão econômica, seja porque se sentem excluídos do processo político. Isso não tem necessariamente relação com religião”, afirma o cientista político.
Enquanto na Europa o medo orbita muito mais em torno da xenofobia e da ideia de choque de civilizações, nas Américas a religião cumpre esse papel, ao apresentar valores e identidade mesmo para quem não se aproxima de demandas teológicas específicas.
“Nos EUA, por exemplo, é a guerra dos progressistas e relativistas morais contra os valores cristãos, por exemplo. Aqui, Bolsonaro conseguiu colocar seus adversários políticos na condição de inimigos da identidade cristã brasileira. Tanto que Lula era acusado de ser satanista e de querer fechar igrejas”, diz Casarões.
“Do ponto de vista do líder populista de extrema direita, esse é um uso instrumental da religião. Não dá para achar que Trump e Bolsonaro são bons cristãos”, afirma o professor da FGV.
Bolsonaro começou a cultivar sua imagem religiosa antes mesmo de se tornar oficialmente pré-candidato. Sua oposição ao que chamou de kit-gay e o batismo no rio Jordão foram dois passos nessa trajetória, feita com ambiguidade suficiente para não preferir nem preterir denominações.
Na Presidência, transformou a fé em questão de Estado ao utilizá-la como critério para nomear ministros de seu governo e do Supremo Tribunal Federal, ou ao atacar legislações de direitos humanos dentro da guerra cultural.
No artigo, Casarões e Barbosa ainda argumentam que Bolsonaro e outros populistas como ele fazem da religião a chave para um alinhamento internacional, com o objetivo de construir uma nova ordem mundial em que as comunidades defendem suas culturas e valores da influência externa.
Visto dessa perspectiva, o bolsonarismo, seja qual for o destino de Bolsonaro, deverá manter seu protagonismo entre as forças de oposição ao governo Lula.
“Com a vantagem de o bolsonarismo não ser mais vidraça, por estar fora do poder. Ele pode ser um movimento menos de contraponto substantivo às pautas do governo e mais de ação na guerra cultural, que segue ocorrendo nas redes sociais e nos Legislativos”, diz Casarões.
Uirá Machado/Folhapress