Diagnóstico, Planejamento, didática, metodologias, avaliação, afetividade, gestão da escola, papel do coordenador pedagógico, temáticas tradicionalmente inerentes aos encontros formativos de início de ano letivo, que ganham uma nova roupagem sendo denominados na grande maioria das jornadas de “Recomposição de Aprendizagem”, “Ressignificando saberes”, “Práticas criativas e/ou inovadoras”, entre tantas outras variações.
De certo, é que no cerce de cada temática sempre estão as seguintes questões: como podemos garantir a aprendizagem de todos os estudantes? O que podemos melhorar naquilo que já fazemos para garantir essa aprendizagem? Como melhorar a gestão da minha rede, das minhas escolas para garantia das aprendizagens tão necessárias? Como recompor as aprendizagens depois quase três anos de pandemia da Covid-19?
Estas questões macros se encontram com outras preocupações do cotidiano do fazerpensar a educação em cada escola: como convencer que alguns colegas professores precisam mudar a sua prática? Como fazer com que os estudantes se interessem mais pela escola, pelas aulas? Como conseguir mais participação das famílias na vida escolar de seus filhos? Claro que temos inúmeras outras questões que surgem no momento de discutir o planejamento de uma Jornada Pedagógica, de pensar as temáticas e os convidados para o diálogo sobre essas temáticas.
Paulo Freire nos diz que a “educação não transforma o mundo. Educação muda as pessoas. Pessoas transformam o mundo.” Gosto muito desta reflexão de Freire, pois ela nos desafia a pensar qual a educação que temos e a educação que queremos. Se a educação muda as pessoas e essas pessoas transformam o mundo, a concepção de educação é essencial para que essa transformação aconteça numa perspectiva positiva, humanizada, amorosa, inclusiva, respeitosa, ética e também crítica, ecosocialmente sustentável, intolerante com as injustiças, que favoreça a consciência histórica e de ancestralidade de cada pessoa e de cada povo.
Para uma educação nesta perspectiva, precisamos também compreender que temos o desafio de repensar nossos processos formativos. Será que eles estão dando conta de favorecer aos nossos educadores e educadoras a tomada de consciência para as mudanças necessárias de práticas no sentido da educação que tanto almejamos? Claro que a resposta para essa pergunta envolve várias variantes que submergem um processo mais amplo de organização ou reorganização do trabalho pedagógico, e sobre esse processo é que quero dialogar um pouco mais.
Ao longo dos anos temos conseguido avanços significativos em nossos processos de planejamento, não podemos negar isso, mas muitos desafios ainda persistem. Um avanço, é superar o processo de Semana Pedagógica e iniciar uma transição para uma compreensão de Jornada Pedagógica. Semana Pedagógica dá a ideia de algo estanque, com período curto e determinado, finalístico, onde se discutem temáticas pedagógicas e se realiza o planejamento prévio para o trabalho de todo o ano letivo que ainda se iniciará pós Semana Pedagógica.
Jornada Pedagógica, nos passa a mensagem que estamos iniciando uma nova jornada, uma nova caminhada, uma viagem pedagógica, e a distância a ser percorrida nesta viagem é a nossa jornada, nos passando a imagem de longevidade, de horizonte, e para chegar lá, muito precisará ser feito. O momento coletivo no início do ano entre os profissionais da educação, é apenas o início de uma jornada que se estenderá até o final do ano letivo. Desta forma, precisamos pensar o ano letivo como parte da Jornada Pedagógica que se inicia neste encontro, e irá se concretizando em processo nas escolas com suas comunidades escolares, e consequentemente na rede entre suas escolas.
Claro que, como toda transição, ainda ficamos presos aquilo que culturalmente está enraizado nas nossas experiências com Semana Pedagógica. Muitas vezes só se muda o termo Semana para Jornada. Culturalmente, este primeiro momento com os profissionais da educação é organizado com atividades coletivas (palestras, oficinas, etc.) e momentos nas escolas onde se discutem as questões específicas, se realiza o planejamento do ano e se organizar a primeira semana de aula e o diagnóstico. Sem dúvidas, muitos destes momentos são extremamente significativos, com muitas reflexões e aprendizagens, muitas fotos, celebrações, afetos.
No entanto, esse processo ainda envolve, ao meu ver, contradições que precisam ser por nós melhor refletidas. Uma primeira questão é a transição entre o ano letivo anterior e o que se inicia. Apesar de estarmos iniciando uma nova Jornada, por ser um novo ano letivo, este novo ano não se inicia do zero. Talvez aqui resida aquilo que para nós deveria ser fundante em um processo de planejamento de início de ano letivo. Sei que muitas secretarias de educação e escolas já caminham nesta direção, realizam a avaliação do trabalho realizado no ano anterior, promovem seminários de avalição com seus profissionais de educação tendo como base um projeto macro de educação, e sempre pautam a organização dos novos processos de olho nestes resultados. No entanto, outros municípios e escolas ainda tem dificuldades de vivenciarem esses processos.
Esse processo é mais comum em municípios que possuem um projeto de educação bem elaborado, e elaborado sobretudo de forma participativa. Municípios que tem o Plano Municipal de Educação como referência para elaboração do plano de trabalho da Secretaria de Educação. Ai mora outro desafio, muitas secretarias municipais de educação sequer tem um plano anual de trabalho, e, como nos ensina Lewis Carroll ao escrever Alice no País das Maravilhas, em célebre frase dita pelo Gato Cheshire à Alice: “Se você não sabe para onde ir, qualquer caminho serve”.
Já aconteceu algumas vezes comigo, ao receber convite de alguns municípios para palestrar em abertura de jornada pedagógica, de me perguntarem: “qual temática você sugere?”. Aí, sempre eu respondo com uma nova pergunta: “qual ou quais são os maiores desafios que vocês têm enfrentado quanto ao trabalho pedagógico na rede?”. As temáticas para as Jornadas Pedagógicas precisam estar linkadas com as necessidades da rede, precisam compor um projeto maior, de médio e logo prazo para a rede. E ai vou tecendo novos desafios deste processo, e mais um é justamente essa compreensão por parte daqueles que se predispõem a assumirem funções técnico pedagógicas em Secretarias de Educação. Muitas vezes falta a compreensão das reais atribuições e responsabilidades destas funções técnico pedagógicas, sobretudo a de coordenar o processo educacional da rede. E pior, existem municípios, que ainda terceirizam a responsabilidade de pensar a Jornada Pedagógica, delegam para consultorias a estruturação de temáticas e convites à palestrantes, e as equipes pedagógicas viram auxiliares administrativos desta organização.
Bom, até aqui sintetizo então a importância de cada município ter um projeto de educação, manifesto em um planejamento de trabalho por parte da Secretaria de Educação, que para organização de seus processos levem em conta a participação dos profissionais da educação e também das comunidades escolares, dos documentos legais como o Plano Municipal de Educação, Referencial Curricular, Projetos Político-Pedagógicos, e que para organização da Jornada Pedagógica, compreenda essa como uma transição de um ano letivo para outro, com características de continuidade, mas não de continuísmo.
Para um início de Jornada efetivo, outro desafio que precisamos refletir, é sobre a função daquilo que se costumou a chamar de diagnóstico. Por mais que a Jornada Pedagógica seja organizada levando em consideração um projeto macro de educação, os resultados do ano letivo anterior, o diagnóstico, que eu prefiro chamar dentro de uma concepção Vygotskyana de valorização dos conhecimentos reais dos estudantes, é fundamental para qualificação do planejamento pedagógico do ano letivo. Isso porque, existem várias outras transições que ocorrem internamente neste processo de início de uma nova Jornada Pedagógica letiva. A transição de estudantes que migram entre as etapas da educação e por vezes até entre as modalidades da educação, muitas vezes com mudança de escolas, troca de turmas que envolve também troca de professores, e também o processo de férias em que os estudantes continuaram em processo de desenvolvimento.
Neste sentido, este desafio nos impõe pensar sobre a cultura que ainda temos em mutas escolas de nestes primeiros momentos com os professores e professoras traçar o planejamento para todo o ano letivo, concluindo o popular plano de curso. Traçamos o planejamento curricular para todo o ano letivo e ao mesmo tempo organizamos o que chamamos de diagnóstico para os primeiros dias. Aí mora o desafio, se nosso planejamento curricular para o ano todo foi definido previamente, qual o sentido toma esse diagnóstico? Não deveríamos nos debruçar sobre a análise dos resultados das atividades diagnósticas para poder prever o plano para o ano letivo?
Outro desafio que vai aparecendo nesta costura, diz respeito ao link entre as atividades diagnósticas e o planejamento macro da educação escolar. Ai recorro mais uma vez a Vygotsky, no sentido de que nossas ações na zona de desenvolvimento proximal devem ter como horizonte a zona de desenvolvimento potencial, ou seja, aquilo que se espera que os estudantes desenvolvam em seu processo de desenvolvimento escolar, os objetivos de aprendizagens, os saberes (científicos e populares), as habilidades e competências. Neste sentido, o planejamento de atividades diagnósticas deve olhar para as aprendizagens esperadas tendo como base o ano de estudo que o estudante está ingressando. É preciso definir quais são as aprendizagens, os saberes que são fundantes, essenciais para que os estudantes possam continuar avançando em seu processo de desenvolvimento nesta nova jornada que se inicia.
Claro que, esta eleição de saberes, este processo precisa ser de valorização dos conhecimentos prévios dos estudantes, e não de classificação linear do domínio de conteúdo. É conhecer melhor para valorizar os saberes prévios, para conhecer esses saberes, e com isso potencializar no processo de planejamento, como nos diz Freire, o reconhecimento e a assunção da identidade cultural. Portanto, não é possível planejar atividades diagnósticas sem parâmetros, sem consciência da zona de desenvolvimento potencial, por mais que ela também não seja o fim, e sim um horizonte dos diversos horizontes possíveis.
Uma outra reflexão que gostaria de compartilhar sobre as atividades diagnóstica, é a necessidade que temos de repensar o tempo e a diversidade de estratégias que é preciso pensar. Não dá para reduzir estas atividades em aplicação de provas e testes escritos. Isso não possibilita a expressão efetiva das aprendizagens que desejamos identificar. Quanto ao tempo, uma, duas semanas me parede ainda pouco para efetivamente ter uma noção qualificada dos saberes prévios. É preciso repensar a ampliação deste tempo para ser estratégico. Na mesma direção precisamos repensar as estratégias avaliativas, para que caminhem na direção de organizar situações de aprendizagens diversas, levando sempre em consideração aquilo que desejamos avaliar. Não dá para ofertar apenas atividades que exijam a memorização e a sistematização escrita individual. O trabalho com o corpo, a oralidade, a expressão artística, o trabalho coletivo, a criatividade, e tantas outros elementos são imprescindíveis de serem vivenciados e observados nas atividades diagnósticas.
A partir deste processo de reconhecimento dos saberes prévios dos estudantes, surge ai a necessidade de se definir o planejamento inicial de trabalho. E entra aí, a importante função da coordenação pedagógica, com orientação e apoio dos técnicos pedagógicos da Secretaria de Educação, de elaborar processos de monitoramento e acompanhamento deste planejamento. Contudo, o monitoramento e acompanhamento para cumprirem sua função de fortalecimento e/ou reorientação do trabalho pedagógico, precisam estar alinhados com uma proposta de formação continuada que trabalhe a partir das necessidades deste processo e com a orientação dos momentos de planejamento coletivo que em geral ocorrem semanalmente em cada escola. O foco de todo esse esforço deve ser dar condições para que os professores potencializem e transformem positivamente suas aulas. Como nos diz Ilma Passos Veiga, a aula “é o espaço onde o professor faz o que sabe, expressa o que sente e se posiciona quanto à concepção de sociedade, de homem, de educação, de escola, de aluno e de seu próprio papel”.
Por isso, concluo essas breves reflexões destacando a importância da potencialização de um processo participativo de elaboração do Projeto Político-Pedagógico de cada escola. Se um município, uma Secretaria de Educação não pode caminhar sem um planejamento, muito menos uma escola pode abrir mão do seu principal instrumento de organização do trabalho pedagógico. Por isso, temos um último desafio, que é trabalhar no sentido de fortalecer essa articulação entre todo esse processo de planejamento, partindo das escolas para as instâncias mais abrangentes. A luta pela garantia de continuidade de políticas e ações na educação que possam proporcionar resultados à médio e longo prazo, pressupõe organização, planejamento participativo com envolvimento e compromisso das comunidades escolares.
Renê Silva
Renê Silva, Doutorando em Educação pela Universidade Federal da Bahia. Pedagogo, Especialista em Gestão Educacional, Especialista em Fundamentos Sociais e Políticos da Educação e Mestre em Educação pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia.