Enfim, o final do ano letivo 2022 se aproxima e, com ele, permanecem ainda muitos dos desafios para a educação neste ano de retorno das aulas presenciais. Particularmente, tenho enfatizado muito a importância do fortalecimento do Regime de Colaboração entre os entes federados e da articulação nos movimentos territoriais em cada rede para troca de experiências e de formação.
O Regime de Colaboração, infelizmente, parece não ter avançado durante este ano. Encontramos poucas ações e, apesar dos esforços de algumas delas, ainda é um tanto quanto desarticuladas entre si e entre as necessidades emergentes do cotidiano da escola da educação básica. No caso do nosso Estado da Bahia, tivemos três grandes ações de formação continuada, cada uma com o seu valor, mas que não dialogaram entre si, e que acabaram se encontrando sem nenhuma articulação na maioria dos municípios: DCRB na Escola pela SEC/BA, Formação Continuada Territorial pelo IAT/SEC/BA e Movimento dos Projetos Político-Pedagógicos pela Undime/BA. Isso mostra o quanto ainda precisamos avançar na práxis do Regime de Colaboração, em especial para pensar um Plano de Formação Continuada articulado em nosso Estado, que sobretudo dialogue com as necessidades reais das redes de ensino, e não as sobrecarregue com atividades por vezes descontextualizadas.
Continuamos ainda sem a elaboração pelo Estado brasileiro de políticas públicas consistentes para as necessidades do contexto atual. As redes municipais, suas secretarias e suas escolas continuam seguindo em um esforço quase que solitário na busca de estratégias e caminhos para a reorganização curricular e ações chamadas de recomposição de aprendizagem. De forma mais ampla, a grande maioria dos materiais organizados e disponíveis para contribuir com esse processo, foram elaborados por entidades e fundações ligadas a iniciativa privada. Quase que não encontramos produções oriundas das faculdades e universidades públicas que tanto realizaram pesquisas junto a educação básica sobre a pandemia e seus efeitos, sobretudo, pesquisas que ajudem a pensar novas estratégias.
No entanto, temos sim um quantitativo de redes municipais de ensino e escolas que conseguiram produzir planos, elaborar estratégias, produzir materiais em diálogo com os educadores e, por vezes, incluindo também a comunidade escolar, experiências que têm sido extremamente importantes na reorganização do trabalho pedagógico com foco na recomposição das aprendizagens. Esse movimento precisa ser fortalecido com políticas públicas de formação continuada e de assistência financeira que potencializem o exercício desta autonomia pedagógica de cada escola e rede. O aprofundamento de estudos e a troca de experiências são fundamentais para potencialização dos fazeres que estão presentes em cada escola, e qualquer proposta de formação continuada precisa ter esse foco.
Sem dúvidas, políticas públicas de assistência financeira são urgentes, mas não conseguiram avançar até o momento. Muitas das estratégias pensadas em cada escola e rede, anunciam a necessidade de recursos para oferta de atividades que ampliem o tempo dos estudantes na escola, para investimento em novos recursos e materiais pedagógicos e tecnológicos. Fica cada vez mais evidente que a oferta da educação integral com ampliação do tempo e atividades diversificadas, é sim mais do que nunca um caminho necessário. No entanto, as ações neste sentido precisam ser precedidas de um projeto político-pedagógico que norteie estes investimentos.
Temos também um outro quantitativo de escolas e redes de ensino que não conseguiram se organizar efetivamente para um trabalho de reorganização curricular durante o ano de 2022. O número limitado de algumas equipes técnicas de secretarias e o volume de programas e projetos externos e internos com tarefas muitas vezes descontextualizadas das reais necessidades pedagógicas, são fatores que com certeza prejudicaram um planejamento mais organizado em muitas redes de ensino. Ao invés das equipes técnicas focarem no diálogo junto as escolas, equipes de gestão, coordenadores pedagógicos e professores sobre a reorganização do trabalho pedagógico e seu monitoramento, tiveram que canalizar energias para dar conta das tarefas pré-definidas externamente ao processo ensino e aprendizagem.
Tenho dito insistentemente a necessidade de no exercício da autonomia que cada rede possui, que as equipes técnicas junto com as escolas avaliarem a pertinência de adesão aos programas e projetos propostos externamente com muita tranquilidade. Se não é obrigatória a adesão, é preciso analisar se determinado programa ou projeto, por melhor que seja a proposta, atende, dialoga com as necessidades do contexto atual das escolas e da rede. Não adianta sair fazendo a adesão sem critério, e sobrecarregar as equipes pedagógicas, tirando elas do foco do que é necessário, mais urgente no contexto atual. Por isso a importância de cada rede ter seu planejamento com as necessidades bem definidas, assim como cada escola ter seu Projeto Político-Pedagógico bem elaborado. O planejamento é fundamental para nortear as decisões.
É extremamente necessário que as equipes técnicas das secretarias de educação trabalhem de maneira muito próxima as equipes pedagógicas das escolas, em especial dos coordenadores e coordenadoras pedagógicas, e para isso é preciso tempo e organização deste tempo. Compreender bem as atribuições destas funções técnico-pedagógicas das secretarias de educação é importante para o trabalho colaborativo. Infelizmente, ainda temos redes em que não há atribuições pré-estabelecidas, normatizadas para as pessoas que atuam na secretaria de educação, ficando estes com funções determinadas por programas e projetos que o município faz a adesão ou por consultorias externas. O exercício da autonomia precede definições claras das funções a serem exercidas no sistema de ensino.
Neste sentido, em muitos municípios não há instrumentos de monitoramento das ações pedagógicas realizadas na rede, principalmente da aprendizagem dos estudantes e do trabalho de ensino ou mediação da aprendizagem pelos professores e professoras. Poucas redes, ao fazem a reorganização curricular, elegendo os saberes, conteúdos, competências, habilidades para o trabalho neste ano letivo, conseguiram paralelamente elaborar estratégias de monitoramento das aprendizagens tendo como base esta reorganização. Sem o monitoramento pela escola e em rede, o risco é o trabalho ser pautado pela lista de conteúdos dos livros didáticos (muleta ainda de muitos colegas professores) e control C/ Control V de atividades da internet. Como consequência, muitos estudantes não conseguem avançar, e ao final do ano volta a pressão pela reprovação destes.
Escolas e redes que conseguiram elaborar estratégias de monitoramento das aprendizagens, promovendo a avaliação periódica do trabalho, usando os resultados para reorientação do trabalho pedagógico, com certeza chegaram com mais tranquilidade para finalizar o ano letivo, conscientes do que foi possível avançar e principalmente, conscientes da necessidade desta reorganização curricular continuar em 2023. Mas, isso não é realidade de parte considerável das nossas escolas e redes.
Contudo, se tivemos dificuldades nesta reorganização curricular e no monitoramento das aprendizagens durante este ano letivo, precisamos antes de fazer juízo de valor sobre os resultados dos estudantes, fazer uma avaliação do nosso trabalho, das condições que nos foram ofertadas pela rede em cada escola, e das condições que conseguimos ofertar enquanto escola e rede para nossos estudantes. Pesando no monitoramento das aprendizagens, em cada escola, é possível rapidamente explicitar os conteúdos, saberes, competências, habilidades que cada aluno aprendeu ou teve dificuldades? É possível relatar as intervenções pedagógicas que foram realizadas juntos aos estudantes com dificuldades, sobretudo para os que iniciaram o ano sem estarem alfabetizados? A rede dispõe de monitoramento destas dificuldades das escolas bem como sistematização das ações que foram desenvolvidas para o apoio necessário ao trabalho de cada escola? Falou-se muito em acolhida, apoio emocional para estudantes e docentes, foi possível ofertar durante o ano? Qual foi o apoio da equipe técnica pedagógica de cada secretaria de educação para suas escolas? Somente uma avaliação inicial séria sobre esses fatores, poderá favorecer uma avaliação mais solidária dos estudantes.
Em muitas escolas, nós convivemos ainda com dificuldades básicas quanto a organização do trabalho pedagógico, a maioria são inclusive dificuldades históricas. Tem escolas que sequer possuem os planos de cursos dos professores organizados. Não existem fichas, planilhas, softwares que ajudem no monitoramento das aprendizagens dos estudantes. As atividades desenvolvidas são anotadas com sinal de menos e mais em rabiscos nos cadernos, muitas vezes sem vínculo com os objetivos de aprendizagens e as habilidades que deveriam supostamente preceder as atividades. Posteriormente os sinais de menos e mais viram notas ou conceitos que soltos, não conseguem expressar o percurso de aprendizagem de cada estudante. Consequentemente poucos coordenadores pedagógicos possuem instrumentos de acompanhamento do trabalho docente e das aprendizagens dos estudantes, algo importante para o trabalho de planejamento semanal e de formação continuada. E, neste sentido, qual tem sido o acompanhamento e suporte das equipes técnicas de secretarias? Em que os programas de formação têm contribuído efetivamente para estas diversas realidades, qual o impacto nas práticas?
As breves reflexões que trago são para provocar o debate sobre a necessidade que ainda temos de conectar as ações macro com as realidades dos diversos cotidianos das nossas escolas de educação básica e também para puxar reflexões sobre as fragilidades deste contexto quanto a ações efetivas de apoio as redes, escolas, professores e estudantes no sentido de que não permitamos mais uma vez que ao final do ano letivo a discussão sobre reprovação tenha apenas os estudantes como foco. Se a rede e/ou escola não conseguiu, por motivos diversos, garantir estratégias necessárias para reorganização curricular, não são os estudantes que precisariam de reprovação.
Por outro lado, não podemos continuar neste debate sem ações efetivas para uma reorganização não apenas curricular, mas te todo o trabalho pedagógico, que caminhe em direção não da recomposição, mas na garantia das diversas aprendizagens necessárias para o desenvolvimento integral dos nossos estudantes. E, sem dúvidas a educação integral é um caminho estratégico, que requer mais do que ampliação ou construção de espaços físicos (que são importantes), mas por si só não garantem o direito à aprendizagem. Se não houver uma reorganização do trabalho pedagógico na perspectiva integral, a gente não consegue avançar efetivamente. Os desafios estão postos e escancarados, agora o que precisamos é de dialogar a partir deles, com foco, chamando a responsabilidade de cada ente federado, colocando o Regime de Colaboração para funcionar na práxis. Da mesma forma, precisamos das instituições públicas formadoras neste processo.
Enquanto isso, como educadores municipalistas, continuemos nas nossas labutas, fortalecendo e valorizando aquilo que temos construído com muito esforço nas nossas redes e escolas, trocando experiências, compartilhando esperanças, para que esta geração não tenha os prejuízos tão anunciado por aqueles que deveriam nos dar melhores condições para nossos fazeres.
Sobre o Colunista/AquiBahia
Renê Silva
Renê Silva, Doutorando em Educação pela Universidade Federal da Bahia. Pedagogo, Especialista em Gestão Educacional, Especialista em Fundamentos Sociais e Políticos da Educação e Mestre em Educação pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia.