O Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) informou internamente nessa sexta-feira (13) estar sem nenhuma verba de livre destinação e determinou a suspensão de atividades. Entre elas estão os eventos de entrega de título de propriedade a beneficiários da reforma agrária, ação que virou uma febre no governo Jair Bolsonaro (PL). Em ofício enviado no início da noite às superintendências regionais, o presidente do órgão, Geraldo Melo Filho, traça um cenário de penúria orçamentária e ordena que mesmo atividades técnicas de campo, como vistorias, fiscalizações e supervisões, devem ter autorização prévia da direção, estando vedadas “quaisquer novas ações a serem iniciadas” que envolvam deslocamento e diárias.
No ofício, obtido pela Folha, o presidente do Incra afirma que as ações da autarquia tem ocorrido graças ao direcionamento das chamadas emendas de relator, que é a verba federal controlada pelo Congresso Nacional, mas que nenhum centavo dessa fonte chegou em 2022. “Como é de conhecimento geral, as ações finalísticas do Incra têm a totalidade de seus recursos como indicador RP-9 [rubrica das emendas de relator], pendentes de indicação por parte do relator geral do orçamento”, afirma Melo Filho no documento. “Nesse cenário, já estamos no mês de maio de 2022 e, até o momento, este instituto não teve disponibilizados recursos para esse fim, pelo fato de que todo o orçamento finalístico do Incra se encontra indisponível, e não pode ser utilizado de forma discricionária pela autarquia”, completa.
A Folha procurou a assessoria do Incra no final da noite desta sexta, mas não conseguiu estabelecer contato até a publicação desta reportagem. Como mostrou a Folha, a gestão Bolsonaro transformou radicalmente o programa de reforma agrária brasileiro, que em todo o seu governo foi gerido pela bancada ruralista. Em três anos, houve uma profusão de paralisações de processos, estrangulamento orçamentário, a quase total suspensão da aquisição de terras e do assentamento de famílias, tendo o Incra direcionado seu foco a uma maratona de entrega de títulos de propriedade às famílias que foram assentadas pelas gestões anteriores.
A titulação insere-se no objetivo político de esvaziar a influência do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) sobre os assentados, além de buscar abrir uma frente eleitoral em um terreno tradicionalmente controlado pelos partidos de esquerda.
Só em 2022, por exemplo, Bolsonaro já participou de sete eventos de entrega de documentos de propriedade, ocasiões em que o clima se assemelha a palanque eleitoral, com beneficiados sendo levados ao palco para receber os papéis das mãos do presidente.
Na ordem de paralisação das atividades distribuída nesta sexta, o presidente do Incra cita explicitamente os eventos de entrega de título.
“Em razão da atual indisponibilidade de recursos para a execução de atividades finalísticas da autarquia, informa-se que devem ser suspensas quaisquer atividades que envolvam deslocamentos para eventos, mesmo que entrega de títulos, uma vez que os recursos deverão ser priorizados em ações entendidas como urgentes e obrigatórias pela Sede.”
A Constituição determina que os beneficiários da reforma agrária devem receber documentos relativos à propriedade, inegociáveis por dez anos. Há títulos provisórios e definitivos, que são concedidos após um trâmite burocrático que envolve não só questões administrativas, como a evolução da consolidação do assentamento e da produção dos assentados.
Movimentos sociais, partidos de esquerda e especialistas são contra a política atual de distribuição de títulos. Argumentam, entre outros pontos, que feita de forma isolada e sem planejamento irá precarizar assentamentos e levar parte das terras a voltar às mãos de latifundiários e do agronegócio.
O orçamento federal para aquisição de terras desabou de R$ 930 milhões em 2011 para R$ 2,4 milhões neste ano, o mesmo ocorrendo com a verba discricionária total do Incra, que caiu de R$ 1,9 bilhão em 2011 para R$ 500 milhões em 2020.
A incorporação de terras ao Programa Nacional de Reforma Agrária, que nos governos Fernando Henrique Cardoso (PSDB) e Luiz Inácio Lula da Silva (PT), de 1995 a 2010, somou quase 70 milhões de hectares, praticamente desapareceu sob Bolsonaro, assim como o número de novas famílias assentadas.
Já a entrega de títulos de propriedade provisórios ou definitivos observou um salto sob Michel Temer (MDB), logo após a edição da lei 13.465/2017, que flexibilizou o processo de regularização fundiária, e virou uma febre sob Bolsonaro, que em três anos e três meses de governo entregou 337 mil títulos, um recorde.
Ranier Bragon / Folha de São Paulo