As convocações bolsonaristas para os atos de 7 de Setembro substituíram palavras de ordem com mensagens anticonstitucionais e autoritárias por termos que dão um verniz democrático às manifestações, mobilizadas a partir da retórica golpista do presidente Jair Bolsonaro (sem partido). A mudança de tom na comparação com atos anteriores —alguns dos quais viraram alvos de investigações do STF (Supremo Tribunal Federal) e de outros órgãos— domina postagens em redes sociais e falas públicas de organizadores analisadas pela reportagem o que sugere uma ação coordenada.
Os protestos marcados para o Dia da Independência representam mais um passo na escalada da crise institucional alimentada por Bolsonaro e buscam dar uma demonstração de força do mandatário, em meio a sinais que apontam para o risco de tentativa de ruptura institucional. Em uma inversão de discurso, a estratégia do bolsonarismo agora é tachar inimigos externos, como o STF, o TSE (Tribunal Superior Eleitoral), a imprensa e a oposição de maneira geral, como os atores que extrapolam a regras democráticas em nome de uma operação de perseguição ao presidente.
O próprio Bolsonaro adotou essa tática nos últimos dias. Na terça-feira (24), afirmou que o TSE “arrebentou a corda” ao determinar às empresas que administram redes sociais que suspendam os repasses de dinheiro a páginas de aliados dele investigadas por disseminar fake news.
Também justificou o pedido de impeachment contra o ministro Alexandre de Moraes, do STF, apresentado na sexta (20), dizendo, em tom de autoelogio, que agiu dentro das “quatro linhas da Constituição”.
A guinada no discurso ocorreu após uma série de ameaças de Bolsonaro à realização das eleições de 2022, condicionadas à adoção do comprovante de voto impresso. Acuado, o mandatário também sugeriu que poderia tomar atitudes fora da Constituição.
As convocações bolsonaristas, portanto, seguem a receita dúbia de flerte com o golpe enquanto pregam a necessidade de proteger a democracia do que enxergam como autoritarismo da esquerda e do STF.
Com uma pauta difusa, os manifestantes usam conceitos presentes na Carta Magna, como os direitos à liberdade e à livre expressão, como chamarizes para o ato. Expressões como “redemocratização já”, “respeito à Constituição” e “renovação do STF” aparecem nos materiais de divulgação.
O grupo Nas Ruas, um dos principais organizadores do protesto em São Paulo, fala em “nova Independência” e “lutar contra o abuso de autoridade”. E não abandona a pauta original —o voto impresso.
Nos grupos de WhatsApp, há sugestões de dizeres para faixas e cartazes, além de recomendações de que as palavras de ordem sejam pedidos, e não críticas. Uma das orientações é para que sejam expostas nas ruas mensagens em outros idiomas, como forma de chamar a atenção da mídia estrangeira.
Um exemplo de proposta, redigido em espanhol, diz: “Irmãos latinoamericanos, nossa democracia está em risco. A verdade é que os brasileiros apoiam Bolsonaro”.
O presidente também está reforçando a determinação de que o ato seja produzido para ter repercussão internacional. Já disse a apoiadores que uma das intenções é “ter uma fotografia para o mundo do que vocês querem” e falou em “mostrar para o mundo o quanto o povo está preocupado com o seu futuro”.
Ainda na linha da narrativa invertida, entusiastas de Bolsonaro afirmam que o ato tem como finalidade exigir “o cumprimento da Constituição”. Aqui figuram duas interpretações equivocadas —a de que há brecha na Carta Magna para que o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), dissolva o STF e a de que o artigo 142 permite uma intervenção militar.
Viralizam nas redes bolsonaristas interpretações de que ações tidas como ilegais, como prisões de apoiadores, investigações de Bolsonaro e desmonetização da cadeia de fake news, forçam o presidente a usar as Forças Armadas como “poder moderador”, o que seria “uma ação constitucional e democrática”.
No ano passado, o ministro Luiz Fux, do STF, delimitou, em decisão judicial, a interpretação da Constituição e da lei que disciplina as Forças Armadas para esclarecer que elas não permitem a intervenção do Exército sobre o Legislativo, o Judiciário ou o Executivo nem dão aos militares a atribuição de poder moderador.
Além do discurso supostamente democrático, a convocação para o 7 de Setembro é marcada pela estratégia de concentrar os atos em Brasília e São Paulo, em vez de pulverizá-los pelo país. A orientação aos militantes é promover um ato local apenas se não houver condições de viajar para os palcos principais.
Bolsonaro anunciou que comparecerá aos atos em Brasília, pela manhã, e em São Paulo, à tarde. Para satisfazer o desejo de encher a avenida Paulista e a Esplanada, resultando em imagens com multidões expressivas, caravanas sairão de outras cidades e estados.
Para financiar o aluguel de ônibus e pacotes de viagem, proliferam nas redes sociais chaves Pix de grupos bolsonaristas para a coleta de doações. Os pacotes anunciados são semelhantes aos turísticos, até com camiseta e lanche. A maior atração propagandeada é a presença do presidente.
As bandeiras da manifestação incluem ainda um apanhado de batalhas ideológicas travadas pelo presidente, como a adoção de voto impresso, o combate ao comunismo —associado ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), líder das pesquisas para as eleições de 2022— e o ataque a governadores e prefeitos de oposição.
A agitação em torno da data reedita a coalizão que levou Bolsonaro ao poder. A mobilização é um esforço conjunto de grupos como evangélicos, ruralistas, policiais e caminhoneiros. Movimentos sociais, entidades de classe e líderes desses setores assumiram a tarefa de convocar apoiadores.
As palavras em público são bem diferentes das que vêm sendo ditas nos bastidores, como mostrou a gravação do cantor Sérgio Reis que se tornou conhecida há dois fins de semana. Nela, o artista falava da preparação de uma greve de caminhoneiros para a semana do 7 de Setembro e fazia ameaças.
“Se em 30 dias eles não tirarem aqueles caras [ministros do STF], nós vamos invadir, quebrar tudo e tirar os caras na marra”, disse Reis, em conversa com um amigo que depois circulou nas redes sociais.
O cantor e outros nove bolsonaristas identificados como articuladores acabaram sendo alvos de uma operação da Polícia Federal. Ao pedir os mandados de busca e apreensão, a PGR (Procuradoria-Geral da República) disse se tratar de um levante “com atos criminosos e violentos de protesto”.
A tensão se elevou com a expectativa da participação de membros das Polícias Militares. O governo João Doria (PSDB-SP) afastou um coronel da PM que fez convocação para os atos. Doria alertou outros governadores sobre a chance de apoiadores de Bolsonaro saírem às ruas armados na ocasião.
Embora as convocações para o 7 de Setembro tenham origem na mobilização do voto impresso, a questão perdeu força com a derrota do tema na Câmara dos Deputados. Já os planos expostos por Sérgio Reis ganharam protagonismo e ainda ecoam nas redes bolsonaristas, apesar da ação da PF.
A ideia alardeada é que grupos bolsonaristas acampem em Brasília e caminhoneiros entrem em greve até que um pedido de impeachment dos ministros do STF seja aprovado pelo Senado.
Folheto distribuído pelos movimentos Coalizão Direita Conservadora, do Brasil Livre e da Associação Brasileira dos Patriotas traça esse planejamento, mas ressalta a necessidade de uma ação “dentro das quatro linhas da Constituição” e reforça: “Não somos contra o STF”.
“Conduta pessoal: Evitar que acusem o movimento de antidemocrático”, diz ainda a orientação. Seguindo essa linha, o apelo por fechamento do STF, tão visto em mobilizações anteriores, agora é expresso na bandeira de “destituição dos ministros”.
A ação orquestrada para neutralizar a imagem golpista dos atos programados para o Dia da Independência ganhou impulso na esteira do cerco do STF aos movimentos antidemocráticos, com a prisão do ex-deputado Roberto Jefferson (PTB) e a operação contra Sérgio Reis e outros bolsonaristas.
Mas, apesar da tentativa de movimentos e organizadores de evitarem que a manifestação seja vista agora como autoritária, bolsonaristas na ponta reivindicam o resgate de causas que nortearam atos desde 2020, como o apelo por dissolução do STF e do Congresso e o clamor por intervenção militar.
Em grupos de aplicativos de mensagens, há desde apoiadores que endossam o estilo mais light (“Temos que pedir voto impresso auditável e troca dos membros STF. Isso que o presidente falou”) até quem pregue ações violentas (“Para que isso acabe terá que haver derramamento de sangue”).
“Eu autorizo a exonerar todos os ministros do STF imediatamente”, diz outro. “Limpeza do STF”, “acabar com a Justiça Eleitoral” e “acabar com o comunismo e os corruptos do país” também são pedidos que animam as hostes fiéis ao governo.
Há quem pregue ainda a criação de um suposto tribunal constitucional militar para julgar os membros dos Poderes ou uma revolução que criminalize o socialismo, expurgue ministros do STF e juízes considerados comunistas e liberte bolsonaristas, além de tomar Redações de veículos de imprensa.
O slogan “eu autorizo” é vendido como uma espécie de senha que os simpatizantes dão ao mandatário para que ele faça o que for preciso para “salvar a pátria”.
Apoiador do presidente Bolsonaro, o deputado federal Coronel Tadeu (PSL-SP) diz que os atos têm duas causas: apoio a Bolsonaro e luta pela liberdade. Ele afirma não compactuar com bandeiras antidemocráticas. “Eu não participo disso, não concordo, acho que isso fere a Constituição.”
Variações da frase aparecem em declarações públicas de outros mobilizadores. Coordenador do movimento Avança Brasil, o empresário Patrick Folena disse ao jornal Folha de S.Paulo no último dia 17 que os pleitos são “mais transparência nas eleições” e se posicionar “contra a ditadura e a censura”.
“A gente nunca defendeu o fechamento de nada e não abraça [pedido de] golpe. Nossa reivindicação é por justiça, respeito ao devido processo legal e direito de defesa”, disse Folena na ocasião, citando como exemplos de abusos as prisões de Jefferson e do deputado federal Daniel Silveira (PSL-RJ).
Para Coronel Tadeu, a participação de policiais militares da ativa na manifestação é legítima, a despeito das críticas e do alardeado receio de que a presença de agentes armados precipite algum tipo de confusão. O deputado confirma que muitos PMs estão se mobilizando para comparecer.
O parlamentar também afirmou há alguns dias nas redes sociais que Doria poderia levar uma surra caso aparecesse na avenida Paulista durante o ato. Dirigindo-se ao tucano, disse: “Leve um batalhão. Um é pouco, leve dois batalhões, porque o que você está fazendo é de ganhar uma surra no meio da rua”.
Para o deputado bolsonarista, participar de ato que defenda pautas antidemocráticas não é o mesmo que fomentar esse tipo de ação. “Eu não me contamino e não me deixo contaminar.” Joelmir Tavares/Carolina Linhares/Folhapress