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Sobre moedores e cordas bambas, assim termina o ano letivo para muitos estudantes

Renê Silva, Pedagogo, Especialista em Fundamentos Sociais e Políticos da Educação, Mestre em Educação.

Ontem,  (16/12), perdi o sono, quando fui dormir já eram 3 horas da madrugada de 17, e acordei 5 horas. Ao acordar compreendi o motivo da minha insônia. Acordei incomodado com está semana que se inicia, refletindo sobre ela, pensando que talvez essa seja a semana mais cruel do ano letivo para muitos estudantes e para os professores de alma, por outro lado, para alguns professores é a semana do acerto de contas. A semana dos Conselhos de Classe. Mas, não era para estar pensando nisso, pois estou de licença-prêmio da minha função de Coordenador Pedagógico na Educação Básica. Não estarei participando de Conselhos de Classe esse ano.

Eu deveria até ficar contente em não ter que participar deste momento tão cruel, no entanto, algumas conversas nestes últimos dias com alguns colegas educadores, que demonstraram preocupação com a situação de alguns estudantes que estavam sendo indicados para reprovação, talvez tenha sido a causa desta minha inquietação, que rotineiramente insiste em me atormentar todo final de ano letivo. Então decidi escrever sobre isso, já que não poderei dizer o que penso nestes espaços de inquisição que se tornaram os Conselhos de Classe.

Sempre digo que me tornei um profissional radicalmente contra a reprovação. Isso causa espanto para alguns. Sempre disse que em Conselho de Classe sou advogado dos estudantes. Isso causa perplexidade para outros.

Refletindo sobre o que é, e o que acontece nos Conselhos de Classe (com raras exceções, é claro), me venho logo na lembrança o texto “Sobre Vacas e Moedores” do livro “A alegria de ensinar”, de Rubem Alves, e uma imagem das várias belas imagens do livro “A vida na escola e a escola da vida” de Clausius Ceccon, Miguel Darcy de Oliveira e Rosiska Darcy de Oliveira.

No texto “Sobre Vacas e Moedores”, Rubem Alves, de formar sempre poética relata a história de um amigo que comprou uma vaca, não pelo leite que ela poderia lhe fornecer, mas porque gostava de ficar olhando para ela “aqueles olhos tão mansos, aquele ar tão plácido, tão diferente das pessoas…” com quem lidava. A família não compreendia, e dizia que aquele seria o leite mais caro da cidade, e que pelas despesas que a vaca dá seria mais barato e prático comprar o leite nos saquinhos plásticos. Rubem Alves vai dizer que seu amigo, “sabia aquilo que os seus práticos familiares não sabiam: que uma vaca, além de ser um objeto com vantagens práticas e econômicas, é um objeto onírico. As vacas nos fazem sonhar…”. Mais adiante, no texto, Rubem Alves diz que bois e vacas, “esvaziadas de suas belas e inúteis funções oníricas pelos homens práticos, estão destinados ao corte. Passei pelo açougue, lugar onde se realiza o destino das vacas. Um açougue é o lugar onde a mansidão bovina é transformada em utilidade comercial. Para serem úteis elas têm de morrer. Sobre um balcão, um moderníssimo moedor de carne”. Para serem úteis, a vacas tem que morrer.

Ai então Rubem olha para carne cortada, o moedor, os rolinhos de carne e vê uma outra coisa: escolas! “As crianças são seres oníricos, seus pensamentos têm asas. Sonham sonhos de alegria. Querem brincar. Como as vacas de olhos mansos são belas, mas inúteis. E a sociedade não tolera a inutilidade. Tudo tem de ser transformado em lucro. Como as vacas, elas têm de passar pelo moedor de carne. Pelos discos furados, as redes curriculares, seus corpos e pensamentos vão passando. Todas estão transformadas numa pasta homogênea. Estão preparadas para se tornar socialmente úteis”.

No livro “A vida na escola e a escola da vida”, a imagem que me venho à mente, é a de uma corda esticada sobre um despenhadeiro, onde os estudantes estão atravessando o despenhadeiro por essa corda. Um dos estudantes caminha com um certa segurança, dois bambeiam e estão mais para cair do que para conseguir se firmar na corda, dois estão pendurados pelo braço a ponto de caírem a qualquer momento, um agachado se arrastando e três já estão caindo. A corda bamba é a escola.

Assim eu vejo os Conselhos de Classe, como Moedores de Carne (estudantes) e como Cordas Bambas de despenhadeiro. Apenas os estudantes são moídos e/ou caiem da corda. Apenas os estudantes são reprovados na escola, e é sobre isso que quero problematizar. Por que só os estudantes são reprovados na escola?

Minha intenção não é que concordem comigo, até porque poucos farão isso, o que quero é mostrar que neste espaço chamado Conselho de Classe, os educadores deveriam ter a coragem de levar para ele, não apenas os estudantes e suas famílias, deveriam levar também os profissionais da educação, a secretaria da educação, os representantes do poder executivo e legislativo, o “Sistema Educacional Brasileiro”, que sequer existe. Os educadores deveriam na análise do processo escolar de cada estudante, registrar as omissões dos diversos sujeitos responsáveis pela garantia do direito à aprendizagem.

Não vou falar das responsabilidades dos estudantes e suas famílias no processo educacional, e muito menos ainda neste texto vou apontar os argumentos e justificativas que muitos educadores usam para transferir aos estudantes e familiares as razões e motivos para reprovação. Isso todos educadores já sabem e voltarão a dizer ou ouvir nesta semana de Conselhos de Classe.

Quero aqui falar do que poucos tem a coragem de dizer. Quando digo que sou radicalmente contra a reprovação, é por entender que nós educadores, somos os profissionais da educação, somos os adultos nesta relação estudantes-professores-familiares-comunidade. Passamos anos estudando Filosofia, Sociologia, Psicologia, Metodologias, Fundamentos e Políticas, tudo para compreender os diversos aspectos desta relação e saber, em tese, lidar e buscar alternativas para os desafios cotidianos. Não consigo mais admitir que, um estudante que passou o ano todo na escola, chegue ao final do ano e seja reprovado. Ah, mas o estudante brincou o ano todo, não fez as atividades, os pais não ligam, etc… blá… blá… blá… Como eu disse acima, esses argumentos e justificativas já são corriqueiros. Vamos falar do que não se fala na grande maioria dos Conselhos de Classe.

Bom, se somos os adultos desta relação, os profissionais, que estudam e compreendem os diversos fenômenos que circundam o ato educativo e que estão inerentes ao processo ensino-aprendizagem, não podemos continuar deixando que apenas os estudantes continuem sendo reprovados nos Conselhos de Classe. Sei que encontramos situações das mais diversas, sabemos que são vários fatores que contribuem para o fracasso de muitos estudantes na escola, mas, ao final, apenas os estudantes são reprovados. Porque? Até quando vamos continuar legitimando essa injustiça?

Pois bem, quero aqui expor apenas três situações mais comuns, entres diversas outras:

1 – Em regra, os estudantes que mais fracassam na escola são estudantes oriundo das classes populares, que muitas vezes vivenciam situações socioeconômicas das mais adversas. Fome, famílias desestruturas, pais ausentes por motivos diversos, vítimas de algum tipo de violência, entre várias outras situações que poderíamos enumerar. Essas discussões sempre estão presentes nas escolas, e são situações que muitas vezes não cabe a escola sozinha dar conta. Contudo, precisamos compreender que, o artigo 226 da Constituição Federal, deixa claro que “a família, base da sociedade tem especial proteção do Estado”. A escola é um braço do Estado. Portanto, cabe sim a escola, ao identificar que um estudante esteja em alguma situação socioeconômica desfavorável, de risco social, encaminhar a situação aos serviços do Estado que possam dar conta desta proteção. O que é muito comum, é a escola identificar, dialogar nos corredores sobre a situação, se comover, e ficar por isso mesmo. Com raras exceções, quando ocorre encaminhamento, na maioria das vezes este é verbal, sem nenhum tipo de registro, e não se faz o acompanhamento e cobrança de retorno. Quando chega ao final do ano, o estudante continuou com dificuldades no aprendizado, e no Conselho de Classe, às vezes até se expõe a situação, mas que pena, a reprovação é apenas do estudante. Se a escola não procurou intervir e fazer os encaminhamentos necessários, porque os responsáveis não são reprovados? Se os encaminhamentos foram feitos, mas não houve retorno, porque os que deixaram de garantir essa proteção não são reprovados?

2- Outra situação muito comum, são estudantes com dificuldades de aprendizagem. Tem estudantes que já são velhos conhecidos no histórico da escola por terem dificuldades em um ou vários componentes curriculares. Ora, ter dificuldades não é pecado, todos nós temos dificuldades em alguma coisa. Algumas dificuldades até temos condições de superar sozinhos, outras não, precisamos de auxílio, e apoio. Pois bem, se somos os profissionais, nós que temos que dar conta desta situação. Esse é o tipo de situação que mostra mais claramente o quanto estamos sendo incompetentes neste processo de garantir o direito de aprendizagem dos estudantes. O estudante passa o ano todo na escola com dificuldades, e chega ao final do ano ainda com dificuldades? Não há para onde correr, a responsabilidade é nossa. Sempre problematizo perguntando, o que o professor, a coordenação, a direção, a secretaria da educação fez para ajudar durante o ano estes estudantes que apresentam dificuldades? Ah, mas a família não acompanha… esqueçam a família, aprendizagem é com a gente. Se o professor na sala não procurou trabalhar de uma outra forma com estes estudantes, se a escola não criou alternativas de qualidade para que estes estudantes vivenciassem outras situações de aprendizagem, de recuperação paralela (e não entre unidades) como preconiza a Lei de Diretrizes e Base da Educação Nacional, se a Secretaria da Educação não buscou junto as escolas alternativas para estas situações, porque só os estudantes serão reprovados por não terem conseguido sozinhos superar suas dificuldades? Vamos pautar nos Conselhos de Classe as responsabilidades dos coordenadores, diretores e Dirigentes de Educação neste processo?

3- Quem está no lado da gestão sabe muito bem do que vou falar agora. Muito sem tem discutido sobre o perfil dos profissionais da educação e sua formação. É comum, ao fazermos essa análise, nos depararmos com profissionais que atuam fora da área de formação ou profissionais que atuam sem ter a formação. Profissionais que são contratados sem critérios qualitativos, apenas políticos partidários. Profissionais que estão cansados e já desistiram da educação, mas não querem se aposentar. Durante o ano, nas reuniões entre gestores e coordenadores, nas análises de resultados entre as unidades, as queixas estão sempre presentes sobre o desempenho de grande parte dos profissionais que estão nesta situação. Falta de controle de classe, indisciplina constante de estudantes na sala, reclamações sobre a falta de dinâmica das aulas, dificuldades no planejamento, na elaboração de atividades, etc… Por outros lado, também é comum nas conversas entre técnicos de Secretaria de Educação a conclusão que tal coordenador ou diretor não tem perfil, não está dando conta de dar o apoio necessário aos professores. Mas, quem vai para o Conselho de Classe são os estudantes destes professores, coordenadores e diretores, e não eles. Quem vai ser reprovado são os estudantes, e não os professores, coordenadores e diretores. Pior, Dirigente de Educação e Prefeito, que tem responsabilidades nesta gestão de pessoal nem são citados nos Conselhos de Classe.

 

Poderíamos descrever aqui diversas outras situações que contribuem para a não aprendizagem dos nossos estudantes, deixo por conta de cada um a continuação desta lista. Esta semana os Moedores e as Cordas Bambas estão à solta nos Conselhos de Classe. Que tenhamos a coragem de nos incluir neste ambiente, e incluir também o coordenadores, gestores escolares, equipes de Secretaria, Dirigentes de Educação, Prefeitos e Vereadores, Governadores, Presidente, Deputados e Senadores. Não deixemos nossos estudantes e familiares só, deixemos o espírito natalino também adentrar os Conselhos de Classe! Que tenhamos coragem de também registrar lá na tal ata final do Conselho: “meu estudante chegou ao final do ano sem aprender por que eu não consegui criar alternativas ou buscar outras para ele superar as dificuldades. Portanto, o problema da aprendizagem está na minha prática, e não no estudante. Me reprovo, a aprovo o estudante com a ressalva que no ano seguinte sejamos mais competentes para ofertar à ele as condições necessárias para que seu direito à aprendizagem seja garantido”. Sonhei. Boa semana de Conselho para todos e todas!

Sobre o autor:

Renê Silva, Pedagogo, Especialista em Fundamentos Sociais e Políticos da Educação, Mestre em Educação. Coordenador Pedagógico da rede de ensino do município de Nova Itarana. Professor Substituto da UESB/Jequié.