Itiruçu Online – Aqui Bahia Jornalismo de Qualidade e Responsabilidade Social

“Flexibilizar é Alongar Sem Dor!” (Moura, 2021)

Foram tantas inspirações maravilhosas das nossas convidadas e convidados que contribuíram com a Jornada Virtual Undime Bahia, realizada no período de 20 a 22 de janeiro, através da Web TV Undime Bahia, em seus canais do YouTube e Facebook, que foi difícil selecionar uma frase que pudesse expressar tanta riqueza de troca de experiências e aprendizagens.

Mas, escolhi a frase “Flexibilizar é alongar sem dor”, da professora Gerusa Oliveira Moura, que contribuiu com o Painel Formacional 6, dialogando sobre a temática “Ensinar e Aprender: elegendo o que é fundante no conjunto de Saberes presentes no Referencial Curricular Municipal”.

Nesta pressão que as redes, sistemas de ensino e escolas tem se colocado quanto a finalização de ano letivo, cômputo de carga horária, fica nossa mensagem de que o foco deve ser a aprendizagem, o direito de aprender. A flexibilização de dias letivos e/ou carga horária devem estar a serviço do direito de aprendizagem, do desenvolvimento de nossos estudantes.

Quando falamos que “Flexibilizar é alongar sem dor”, precisamos compreender que a flexibilização preconizada pela Lei 14.040/2020 e pelas normativas do Conselho Nacional de Educação, quanto a carga horária e dias letivos, vêm acompanhadas de vários aspectos que precisam ser garantidos em qualquer iniciativa de flexibilização.

No artigo anterior, “Prudência, sensibilidade e bom senso: requisitos necessários na hora de planejar o ano letivo em 2021”, trouxemos estes aspectos que seriam justamente o “alongar sem dor”.  “Alongar sem dor”, significa que na flexibilização de carga horária e/ou dias letivos é preciso incluir no planejamento e desenvolvimento de ações, o cuidado com a igualdade de condições para realização das atividades, o cuidado com o cumprimento dos objetivos de aprendizagem e desenvolvimento vinculados a cada etapa e modalidade, a observação das orientações pediátricas pertinentes quanto ao uso de tecnologia da informação e comunicação, o cuidado em assegurar aos alunos e professores que tenham acesso aos meios para realização das atividades e a obediência aos protocolos das autoridades sanitárias no desenvolvimento destas atividades. Todos estes aspectos estão contidos nas normativas vigentes sobre esse contexto de excepcionalidade.

Dentro da perspectiva de compreender a educação escolar como um direito social fundamental e de responsabilidade de sua oferta pelo poder público, acreditamos que não há mais condições, de neste contexto de pandemia, não realizar atividades mesmo que remotas, com todos os desafios que temos. A grande maioria dos municípios tem mostrado que sim, é possível manter o vínculo com os estudantes, manter rotinas de estudos e aprendizagem. Acho que essa discussão deve estar superada.

O grande nó que se apresenta, é quanto a cultura positivista, tecnicista, bancária, quantitativista presentes na nossa prática educativa. Existe uma compulsão pela quantificação na educação que relega para décimo plano os aspectos qualitativos, mesmo que a legislação e as normativas existentes puxem a todo momento para a prevalência dos aspectos qualitativos sobre os quantitativos, principalmente na avaliação. Parece que é preciso transformar tudo em valor numérico.

Na Jornada Virtual realizada pela Undime Bahia, buscamos trazer como foco em toda a programação, justamente a qualidade, a aprendizagem, as possibilidades e caminhos sinalizados na legislação e normativas vigentes, tudo isso articulado com concepções e campos teóricos que rompem com essa cultura conteudista e quantitativista de educação. As reflexões, provocações presentes em cada fala nos painéis da Jornada Virtual, precisam nos levar a conversão de cada um de nós! Conversão segundo Luckesi, “quer dizer conscientização e prática desta conscientização. Não basta saber que dever ser assim; é preciso fazer com que as coisas sejam assim. A conversão implica o entendimento novo da situação e dos rumos a seguir e de sua tradução na prática diária”.

Neste sentido, para o ano letivo 2021, neste diálogo sobre o foco em objetivos de aprendizagem e desenvolvimento, voltado para “conteúdos essenciais”, alinhados a Base Nacional Comum Curricular, quero aqui alertar para algumas armadilhas, que, nesta tentativa de trazer a discussão para o direito de aprendizagem, podem nos fazer correr o risco de ofertar menos para quem está tendo menos durante este contexto de pandemia.

As escolas particulares de educação básica, praticamente não diminuíram sua exigência em termos de conteúdos a serem trabalhados. O que houve foi uma mobilização em torno da metodologia de trabalho. Não vou fazer aqui qualquer análise ou juízo de valor sobre o trabalho das escolas particulares, este não é o objetivo, quero aqui apenas sinalizar, que a rede privada, focou nas condições para o trabalho de professores e estudantes, e investiu na metodologia.

Muitas análises sobre o contexto atual têm destacado que a pandemia apenas expos as mazelas historicamente presentes na educação pública brasileira, o que é uma verdade. E é uma verdade também, que em 10 meses de suspensão das aulas presenciais, nada ou quase nada foi feito para reverter ou minimizar essas mazelas. Não temos uma política pública que foi pensada e colocada em prática, mesmo que de forma emergencial para investir em condições para o trabalho dos professores e estudantes, salvo algumas ações isoladas de algumas redes e/ou sistemas de ensino. Enquanto Estado brasileiro não temos uma política de investimentos para educação neste contexto da pandemia.

O que sobrou para a educação pública brasileira, foi discutir aquilo que é possível fazer, pedagogicamente, dentro das precárias condições de trabalho que temos, ou seja, ofertar menos a quem precisa na prática de mais. Agora, o centro do debate pedagógico ficou na “seleção de conteúdos essenciais”. Plataformas já são ofertadas gratuitamente inclusive com a seleção destes “conteúdos essenciais”. Cuidado, as armadilhas para aprofundar nossa desigualdade educacional são lançadas em embalagens lindíssimas com falas sedutoras, aniquilando aquilo que é mais caro ao trabalho de cada professor, que é planejar com base na sua realidade, elegendo não conteúdos, mas como trabalhamos no Programa dos Referenciais Municipais, trabalhando “saberes”, e como nos diz o professor Roberto Sidnei Macedo,  com uma visão de currículo “como um sistema aberto, relacional, que acolhe o complementarismo com um movimento dialógico necessário para sua relevância socioeducacional”.

Precisamos ter a mesma indignação que traz o professor José Pacheco, idealizador da Escola da Ponte, no seu livro Dicionário de Valores, ao relatar sua resposta quando indagado sobre qual foi o maior obstáculo à concretização do projeto da Escola da Ponte: “o maior obstáculo fui eu. Fui eu, enquanto não me indignei, enquanto não agi para assegurar o saber e a felicidade dos meus alunos. Só eu, num agir não solitário, poderei mudar algo. Ainda que alguém creia que o esforço de um só nada vale, é preciso agir. Mesmo que o medo nos assalte, é preciso reagir. Sem a coragem da indignação, a sabedoria é estéril”.

Faço questão de destacar, reconhecer, aplaudir os diversos e inúmeros educadores e educadoras, sejam os que estão atuando na docência, na gestão escolar, em coordenação pedagógica, equipes técnicas de secretarias ou enquanto dirigentes, que tiveram e tem tido a coragem de pensar, planejar, executar ações na busca de garantir o direito de aprendizagem dos nossos estudantes. Entre os erros e acertos seguem no dia a dia monitorando, avaliando, replanejando seu fazer. Venceram o medo.

O que preocupa neste contexto de desenvolvimento das atividades remotas, é justamente o foco em querer quantificar tudo, dar o valor numérico, deixando de lado toda riqueza qualitativa do trabalho que vem sendo realizado. E, agora, focar em dar conta de fechar os anos letivos 2020 e 2021 no ano civil 2021. Parece que não há outra alternativa a não ser ao mesmo tempo bombardear professores e estudantes com ampliação de carga horária diária, sábados letivos, diminuição de recessos, tudo para até 31 de dezembro de 2021 “dar conta dos dois anos letivos”, numericamente, é claro. Onde ficam nossos estudos e discussões sobre o processo de aprendizagem? Esse tipo de sobrecarga favorecerá a aprendizagem e desenvolvimento? E as outras rotinas de lazer, tempo com a família, tempo nos diversos espaços e grupos, tempo com a família, com os amigos, tempo para o ócio, não são mais importantes para a aprendizagem? Quem disse que não precisaremos continuar trabalhando em um continuum curricular em 2022, 2023? Alias, o continuum curricular não é algo novo, nossa organização curricular segue um continuum.

Com isso, quero aqui tirar o foco da discussão pedagógica dos “conteúdos essenciais”, e propor que comecemos a aprofundar as reflexões em torno da organização do trabalho pedagógico, para as possibilidades metodológicas, para a didática. Estes campos do saber, tem muito a nos dizer sobre o como podemos, dentro das possibilidades, planejar o trabalho remoto. Não é diminuindo quantitativo de conteúdos que vamos garantir direito de aprendizagem. Hoje, a grande maioria dos municípios baianos já possuem seu referencial curricular, elaborado, dentro das possibilidades, pelos educadores e educadoras. Aprendemos que o currículo nasce, se nutre e se renova a partir das ações vivenciadas por seus atores/autores em cada município, nas escolas. Eleger saberes é uma tarefa inerente a função docente. Com base em cada realidade, estes saberes serão eleitos e trabalhados pelos educadores e educadoras.

O desafio não pode estar na quantidade de conteúdo a ser trabalhado. Aí recorro ao nosso patrono da educação brasileira, que nos diz que ensinar exige respeito aos saberes dos educandos. E, neste contexto, elementos da realidade objetiva não faltam para relacionar com o ensino de conteúdo. O que precisamos, é dialogar, refletir, promover momentos de troca e estudos sobre metodologias e a didática. Atividades remotas não podem se tornar envio de atividades impressas para os estudantes responderem. Precisamos pensar em formas de interação, de trocas, de vivências a partir destas atividades, dando o mínimo de vida e significado.

Isso é fácil? Não, nem um pouco, mas não podemos, em nome de nossas crianças, adolescentes, jovens e adultos que precisam da escola pública, nos conformarmos com a minimização daquilo que já é mínimo. Por isso, o investimento, a organização, o planejamento de ações formacionais são indispensáveis para que possamos coletivamente atravessar da melhor forma esse momento. Paralelamente, não devemos continuar conformados com as precárias condições que nos estão sendo impostas para realização do trabalho. São duas frentes complementares, a de fazer com qualidade e compromisso social tudo que for possível, e a de lutar juntos aos governos por reais ações que nos deem dignidade para o desenvolvimento do nosso trabalho.

Por hoje é isso, até o próximo artigo!

 

Renê Silva

Pedagogo, Especialista em Fundamentos Sociais e Políticos da Educação, Mestre em Educação pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia

OBS: As opiniões expressas neste artigo representam a opinião exclusiva de seu autor.