Temos assistido por parte de muitas redes, uma corrida desenfreada e aligeirada de ampliação da jornada escolar em tempo integral, sem na maioria dos casos, observar um planejamento mínimo que contemple as diretrizes estabelecidas pela Portaria nº 2.036/2023 que estabelece ações estratégicas no âmbito do Programa Escola em Tempo Integral.
O próprio Programa Escola em Tempo Integral, instituído pela Lei nº 14.640/2023, tem como foco apoiar a expansão de matrículas na educação básica com qualidade e equidade no acesso, permanência e trajetória escolar, visando alcançar o que estabelece o Plano Nacional de Educação (PNE) que estipula que até o final da vigência do Plano, um mínimo de 50% das escolas públicas ofereçam educação em tempo integral e pelo menos 25% dos alunos das redes públicas de ensino estejam matriculados em programas de Educação de Tempo Integral (ETI).
Ora, ao menos que a rede tenha efetivamente condições financeiras, estruturais e pedagógicas, não há obrigatoriedade para que toda a rede oferte imediatamente jornada escolar em tempo integral, basta observar o que dispõe o PNE e respectivamente os planos locais de educação. Mesmo que um plano local tenha estipulado metas mais ambiciosas do que o PNE, nele com certeza está posto as estratégias que deveriam ter sido desenvolvidas para o alcance das pretensas metas. Há de se avaliar se foram colocadas em prática ao longo dos anos.
A Portaria 2.036/2023, estabelece que a ampliação de matrículas na jornada escolar em tempo integral deve ser pautada pela reorientação curricular na perspectiva da educação integral, com atenção especial a formação dos educadores, olhar estratégico para o aperfeiçoamento da articulação intersetorial nos territórios e sobretudo, o fomento de projetos inovadores em educação em tempo integral, o que tem sido mais negligenciado neste processo aligeirado.
O que temos assistido, como caminho rápido e possível em detrimento de um planejamento mais elaborado, é um movimento de ampliação precarizada de jornada escolar, o que está muito distante da perspectiva da Educação Integral. E o pior, é que muitas vezes essa decisão de ampliação tem sido conduzida de forma verticalizada por equipes de gestão de secretarias, sem o devido diálogo com as escolas e suas comunidades. Como temos uma cultura externo determinante sobre a escola, está por sua vez não resiste e acaba assumindo a tarefa do improviso, com a cumplicidade de Pedagogos e Pedagogas que atuando em funções de técnico-pedagógicas e/ou de coordenação, se submetem por motivos diversos ao cumprimento da tarefa acrítica.
Cabe uma aspa aqui, no sentido de registrar que existem sim muitas experiências que têm resistido a esse aligeiramento e ressignificado o pensarfazer pedagógico, justamente promovendo práticas inovadoras que tem rompido com essa lógica linear, de fragmentação curricular, de plataformização da educação, construindo outras formas de pensarfazer escola, como nos provoca nossa própria Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), sobretudo no seu artigo 23, assim como as diretrizes expressas na Portaria nº 2.036/2023. Mas, meu objetivo aqui, é justamente provocar os que tem passivamente aceitado essa ampliação de jornada precarizada, para que reajam, como tantas outras realidades de escolas públicas tem feito.
Neste sentido, um dos grandes desafios postos, tem sido a necessidade de superação do debate superficial de turno e contraturno, de criação de mais caixinhas curriculares de 50 minutos, focados na necessidade imediatista de ampliação da jornada de tempo escolar para atender a adesão ao Programa Escola em Tempo Integral. Para isso, muitas redes (com algumas dignas exceções) tem aberto mão do exercício de sua autonomia de pensar junto com seus profissionais e comunidade escolar formas outras de pensarfazer a escola, e contratado assessorias e consultorias que infelizmente tem apenas chegado nas redes com “soluções” de matrizes curriculares prontas, aplicando control C/ control V com pequenos ajustes, desconsiderando a importância de um debate sobre outras formas de organizar o tempo, o espaço, o currículo na/a partir da escola olhando para as potencialidades do território, da cultura local e para especificidades dos diferentes saberes que precisam englobar uma proposta de ampliação do tempo numa perspectiva de educação integral.
Por isso, para reagir, é preciso se apropriar do que diz a própria legislação educacional, que no âmbito da ampliação da jornada escolar, tem nos desafiado a superar a organização curricular baseada na lógica do turno e contraturno para um currículo integrado e integrador de experiências e o fomento e valorização de práticas educativas orientadas por uma perspectiva interdisciplinar, com superação da fragmentação dos conhecimentos com as práticas sociais e da vida cotidiana. Esses e outros importantes princípios estão expressos na Portaria 2.036/2023, que ao que parece, tem recebido pouquíssima atenção neste debate.
Com isso, temos um debate ainda centrado na experiência de turno e contraturno do Mais Educação, e reduzido a montagem de matriz curricular, sem aprofundamento de ações de formação que envolvam estudos sobre a didática, metodologias, a avaliação, a aprendizagem, a reformulação do projeto político-pedagógico, as especificidades de cada etapa e modalidade da educação.
A educação especial, como exemplo, tem ficado a margem desta discussão, uma vez que a ampliação do tempo escolar com a criação de mais caixinhas de 50 minutos, inevitavelmente excluirá os alunos desta modalidade de atividades coletivas para garantir o atendimento na sala de AEE.
Na educação do campo, da mesma forma, a ampliação da jornada e tempo, em muitas realidades não tem dialogado com os princípios e fundamentos desta modalidade. Saberes outros que poderiam/necessitariam serem incorporados, são ignorados em nome de uma padronização curricular da rede.
Na educação infantil, equivocadamente, algumas redes têm transformado os campos de experiências em caixinhas disciplinares ou eixos com a inclusão de atividades curriculares de 50 minutos, descaracterizando toda a proposta curricular conquistada pela educação infantil. A ampliação da jornada escolar na educação infantil precisa potencializar a vivencia a partir dos campos de experiências e dos direitos de aprendizagem, sem retroceder para a fragmentação curricular.
Pensar a ampliação do tempo escolar numa perspectiva integral requer planejamento, formação crítica que problematize nossas práticas pedagógicas com uma perspectiva de superação e criação de novas práticas. Requer, sobretudo, que a escola assuma esse protagonismo, e isso só pode ser feito, se o debate partir efetivamente de qual escola queremos/necessitamos, do que (nós comunidade) queremos com a ampliação da jornada escolar, através da revisão do Projeto Político-Pedagógico de cada Escola.
Aliado a esse aligeiramento de ampliação precarizada de jornada escolar, infelizmente nossas escolas ainda têm convivido com Programas e Projetos focados em ritualização de testes padronizados que invadiram de vez a rotina das escolas da Educação Básica Pública. Professores passam dias, semanas cumprindo rituais de aplicação de testes e tomada de leitura de estudantes para lançamento em plataformas. Chamam isso de diagnóstico. Com o resultado classificam os estudantes em “abaixo do básico”, “básico”, “proficiente”, “avançado” ou outros termos que por aí vagam. O foco ainda persiste em Língua Portuguesa e Matemática.
Com isso, o debate da ampliação da jornada escolar acaba tendo como foco a melhoria da indicadores externos, e não a garantia das aprendizagens com base nas necessidades. Ainda falam em Educação Integral, mas não vemos o trabalho com todas as dimensões necessárias para um desenvolvimento pleno. Tenho assistido perplexo, consultorias que tem incluído no currículo escolar, “deverzinho de casa”, que agora é feito na escola com a ampliação do tempo, sob roupagem de “Orientação de Estudo” que se soma a reforço escolar. Ampliam-se as atividades de treinamento para os testes padronizados, e as poucas atividades artísticas, culturais, esportivas, de cultura digital etc. que são incluídas, são feitas sem a mínima articulação curricular e condições necessárias. Cria-se a caixinha nova de 50 minutos e abandona-se o profissional a própria sorte.
O que mais me choca, é o silêncio e a conivência de tantos Pedagogos e Pedagogas, Psicopedagogos que atuam tanto em sala de aula, quanto em funções de Coordenação Pedagógica ou Técnico-pedagógica em Secretarias. Nos bastidores a reclamação é quase que total sobre a sobrecarga para dar conta de tantos testes, tempo para lançamento em plataformas e as pressões de cobrança para melhoria de resultados.
No entanto, não vemos reação. Fico pensando para que passar pela faculdade, investir em cursos de especialização, pós-graduação, se o exercício da função tem se resumido em apenas executar rotinas de programas desconectados com as necessidades reais do pensarfazer pedagógico?
Os Pedagogos e Pedagogas precisam reagir e assumir o papel de cientistas da educação, colocar em prática o papel de juntos com o coletivo da escola, pensarfazer o cotidiano da educação.
Não sou contra os Programas e Projetos, apenas fico abismado com a postura acrítica que toma conta das escolas e redes ao assumirem sem nenhuma criticidade, sem nenhuma reflexão efetiva, sem nenhum ajuste, adequação, e porque não ruptura, a adesão a Programas e Projetos padronizados.
Isso fere a tão propalada autonomia das escolas respaldada pelo artigo 15 da nossa LDB. Se discute tanto inclusão, diversidade, equidade, aprendizagem significa, afeto, avaliação formativa etc., mas no dia a dia o foco está nos testes padronizados.
Enfim, o debate sobre a ampliação da jornada escolar em uma perspectiva integral carece urgentemente de aprofundamento. Precisamos olhar com uma escuta sensível para dentro das escolas que estão tendo a jornada escolar ampliada, sentir e acolher as vozes dos educadores e educadoras, dos estudantes, das famílias sobre os impactos efetivos das nossas experiências de tempo integral. Há um sentimento de insatisfação que muitas vezes é omitido no compartilhamento de experiências de “sucesso” apresentadas por gestores educacionais. Isso não contribui para que avancemos na oferta de uma educação integral de fato, que garanta direitos e promova um desenvolvimento pleno.
Normas locais que regulamente a ampliação da jornada escolar estão sendo elaboradas e aprovadas sem a devida participação da comunidade escolar apenas para cumprir uma exigência legal. Há inúmeros problemas de condições de trabalho para desenvolvimento de um currículo integrado e integrador, com atividades práticas, culturais, esportivas, etc. Faltam materiais didáticos, pedagógicos, laboratórios, espaços outros para desenvolvimento de atividades. Temos desafios quanto a formação inicial e continuada. Profissionais estão sendo inseridos nas escolas por possuírem saberes específicos em determinada área, mas não tem sido dado acesso ao saber pedagógico. Sem contar, que temos vivenciado processos de contratação fragilizados de novos profissionais, com remuneração baixa e sem acesso a carreira docente.
E, o fortalecimento da fragmentação curricular com mais caixinhas de 50 minutos não tem contribuído para uma ampliação da jornada escolar numa perspectiva integral. Matrizes curriculares têm inserido novas atividades muitas vezes com uma aula de 50 minutos semanal, sem nenhuma reflexão sobre ensino/tempo/aprendizagem. Precisamos encarar definitivamente o debate sobre organização curricular, e se perguntar: a organização do tempo curricular em 45, 50 minutos tem favorecido o acesso aos conteúdos necessários para o desenvolvimento pleno? A resposta é óbvia, não. Mas, por que se insiste nisso? Alunos e professores vivem uma rotina maluca de correria de uma sala para outra. Gasta-se mais tempo com o deslocamento entre salas, chamadas, rituais de “acalmamento” da turma do que com mediação de processos de aprendizagem.
Agora além de vivenciar esse desafio de ampliação da jornada escolar como educador, passei a vivenciar como pai. A escola do meu filho (anos iniciais do ensino fundamental), num processo bem atabalhoado, iniciou agora (maio) a jornada ampliada, com turno e contraturno. No contraturno, acrescentou-se mais caixinhas de 50 minutos, sendo três por dia. Quatro dias da semana têm obrigatoriamente “Orientação de Estudo” (deverzinho de casa e/ou reforço), alternando com outras atividades (inglês, esportes, cultura digital, horticultura, dança, violão). Gente, é uma loucura, o tempo de aprendizagem é mínimo nestas atividades. Muita coisa, que se torna quase nada ao mesmo tempo pela forma fragmentada de organização curricular-didático-pedagógica. Não se pensa no brincar, no tempo de convivência, na articulação da escola com o território, com uma articulação curricular que integre os diferentes saberes. Não se pensa nas especificidades de cada campo do saber. 50 minutos é suficiente para se iniciar, desenvolver e concluir determinadas atividades esportivas, artísticas, culturais etc.?
Mas, esse é o modelo que vem sendo reforçado, não é uma especificidade da escola do meu filho. Não vejo de forma alguma que pensar inicialmente a ampliação da jornada escolar com atividades de contraturno seja um crime, pois muitas vezes é o que é possível fazer. No entanto, não se pode renunciar à necessária articulação curricular e didático-pedagógica expressa em um Projeto Político-Pedagógico, que possa ir repensando e ressignificando os tempos e espaços desta organização na escola e em seu território, pensando e experenciando outras formas de escola através de espaços de formação. E para isso, é urgente a escola tomar para si essa discussão, cabendo a quem está na gestão educacional de redes, garantir todas as condições necessárias para que esse debate se fortaleça criticamente e propositivamente a partir das escolas, com seus espaços de formação.
Renê Silva, Doutorando em Educação pela Universidade Federal da Bahia. Pedagogo, Especialista em Gestão Educacional, Especialista em Fundamentos Sociais e Políticos da Educação e Mestre em Educação pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. Coordenador Pedagógico da Rede Municipal de Nova Itarana/Bahia.