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Quebra de sigilo na CPI expõe contatos de dirigente da Saúde com gabinete paralelo e defensores de tratamento ineficaz

Quebras de sigilo telefônicos entregues à CPI da Covid mostra que a secretária da Gestão do Trabalho e da Educação do Ministério da Saúde, Mayra Pinheiro, manteve contato durante a pandemia com membros de fora do governo que defendiam tratamento sem eficácia contra a doença. A CPI da Covid pretende votar nesta terça-feira (3) requerimento do senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) que aprova a apresentação de pedido judicial para que Mayra seja afastada do cargo.

A Associação Médicos Pela Vida atua em defesa do chamado tratamento precoce contra a Covid-19, tese sem respaldo na comunidade científica. As ligações que a Folha teve acesso foram trocadas entre abril de 2020 e junho de 2021. Somente com Eduardo de Freitas Leite, um dos coordenadores da associação, foram 57 ligações.

Entre elas, cinco ocorreram em 8 de setembro do ano passado, data em que o grupo se reuniu com o presidente Jair Bolsonaro. Foi nesse evento que o virologista Paolo Zanotto deu a sugestão de criar uma espécie de “gabinete das sombras” para tratar da resposta oficial à pandemia. O cirurgião-geral já fez diversas lives defendendo o tratamento precoce e colocando em xeque a qualidade da vacina. Segundo ele, elas “podem resultar em mais efeitos danosos do que em benefícios”.

Conhecida como capitã cloroquina, Mayra também trocou cinco ligações com a médica Patricia Del Pilar Suarez Sicchar. Ela disponibiliza seu contato no site da associação para pessoas que querem realizar consulta contra a Covid.

A médica informou à reportagem que pertence ao Sindicato dos Médicos do Amazonas e teve contato com Mayra Pinheiro para reportar sobre a saúde do Amazonas. As quatro primeiras ligações foram trocadas nos dias 4 e 5 de janeiro, dias antes do sistema de saúde entrar em colapso e pessoas morrerem por falta de oxigênio em Manaus.

A Associação Médicos Pela Vida disse, por meio de nota, que médicos conversam com outros médicos e instituições em benefício da saúde e da vida das pessoas.

“Faz parte do cotidiano no seu dia-a-dia. Sejam médicos, ou quaisquer outros profissionais, como jornalistas, bombeiros, professores, advogados, vendedores de automóveis, chefs de cozinha, domésticas e limpadores de fossas.”

A associação mantém um site favorável ao tratamento precoce e alguns de seus integrantes compõem o chamado gabinete paralelo, grupo de aconselhamento informal do presidente Jair Bolsonaro, um dos principais defensores no Brasil do tratamento precoce.

Um dos principais nomes do gabinete paralelo é do deputado Osmar Terra (MDB-RS). Ele chegou a trocar cinco ligações com Mayra. Médico, Terra foi um dos principais conselheiros de Bolsonaro durante a pandemia e participou de 11 encontros com o presidente.

A proximidade de Terra com Bolsonaro ocorreu mesmo após ele ter feito um prognóstico de que menos de 1.000 pessoas morreriam no Brasil em decorrência da Covid.

Outro interlocutor de Mayra foi Regis Bruni Andriolo, que aparece em um vídeo ajudando a servidora na preparação para o depoimento da CPI da Covid. Ao todo, eles trocaram cinco ligações.

O vídeo com a conversa foi obtido pela CPI na quebra de sigilo da servidora. O link para a conversa estava em sua caixa de email.

Na gravação, a secretária do Ministério da Saúde pediu ajuda para ele preparar perguntas que poderiam ser enviadas para senadores governistas da CPI. As perguntas seriam direcionadas a ela durante o seu depoimento.

“Eles jogam para eu fazer o gol”, resumiu a servidora em uma conversa em que ela se preparava para o depoimento, dado em 25 de maio.

No vídeo também aparece Hélio Angotti Neto, secretário de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde. O servidor, que também é defensor do tratamento precoce, atuou na pasta comandada por Mayra antes de virar secretário.

Outro nome que está na lista é do senador Eduardo Girão (Podemos-CE). Eles trocaram três ligações, sendo duas antes da CPI da Covid e outra em abril, no período em que a comissão já estava funcionando.

O senador disse que Mayra e ele são do Ceará e foram candidatos ao Senado em 2018 na mesma coligação. Mas antes mesmo das eleições, já tinham uma boa relação, pois compartilhavam as mesmas causas, como a da vida desde a concepção.

Já no mandato, afirmou que conversou sobre diferentes assuntos, principalmente em relação a demandas do estado do Ceará, como o desabastecimento de oxigênio para o interior do Ceará e UTI neonatal. Ao ser perguntado se eles conversaram sobre tratamento precoce, o parlamentar disse que é algo natural porque os dois possuem a mesma visão sobre o tema.

“Assim, considero extremamente natural as ligações para a Dra. Mayra no contexto acima descrito, mesmo hoje tendo algumas divergências políticas com ela.”

A reportagem procurou o Ministério da Saúde, Mayra Pinheiro, Hélio Angotti, Regis Bruni Andriolo e a assessoria do deputado Osmar Terra, mas não houve resposta.

Para o senador Randolfe Rodrigues, autor do requerimento pelo afastamento da servidora, pelo que foi levantado até o momento pela CPI já há elementos suficientes para apontar a participação de Mayra Pinheiro na condução do governo federal que levou à morte de mais de 550 mil pessoas.

“A sua manutenção no cargo mostra que nada mudou, apesar da última troca do ministro da pasta, trazendo prejuízos óbvios para a população brasileira, bem como para a apuração dos fatos”, disse no documento.

Em depoimento à CPI da Covid, a secretária fez defesa ferrenha do uso da hidroxicloroquina, medicamento sem eficácia comprovada para tratamento da Covid-19, e admitiu que a pasta federal orientou médicos de todo o país para que adotassem o tratamento precoce.

Mayra também apresentou versões que conflitam com as apresentadas à comissão pelo ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello, em particular sobre a crise em Manaus e a plataforma TrateCov.

Mayra é investigada em ação que corre em segredo na Justiça do Amazonas. Ela confirmou ter dito à Secretaria de Saúde do estado que era inadmissível não adotar a orientação da pasta sobre a utilização desses medicamentos —ineficazes no enfrentamento da doença, segundo estudos.

Raquel Lopes e Constança Rezende/Folhapress