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A ausência de coordenação do atual contexto educacional: algumas consequências já são sinalizadas para a educação pública

Colunista Renê Silva. Foto/Divulgação arquivo pessoal

A ausência de coordenação do atual contexto educacional sinaliza consequências preocupantes para nossos estudantes da educação pública básica. Revestida do discurso da “autonomia”, diversas ações tomadas pelos sistemas de ensino, começam a trazer seus reflexos. Mas, antes de abordar algumas reflexões sobre essas consequências que começaram a se evidenciar, gostaria de, com base no disposto em nossa legislação educacional, fazer algumas considerações que considero fundamentais.

Aqui, não me debruçarei sobre as importantes reflexões e detalhamentos de interpretação da legislação educacional, constantes nas normativas do Conselho Nacional de Educação, mas quero sim, trazer uma breve análise, direta, do que dispõe a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), sobre o papel dos entes federados.

A Lei 9.394/69, é clara no seu Art. 8º quando diz que a “União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios organizarão, em regime de colaboração, os respectivos sistemas de ensino”. Continua ainda, em seu § 1º, dizendo que “caberá à União a coordenação da política nacional de educação, articulando os diferentes níveis e sistemas e exercendo função normativa, redistributiva e supletiva em relação às demais instâncias educacionais”.

É fundamental não perder de vista essa responsabilidade da União na coordenação da política nacional de educação, tendo que fazer a articulação entre os diferentes níveis e sistemas. Parece que cabe aqui um questionamento, sobre onde andam os guardiões e a quem cabe formalmente cobrar da União o cumprimento do que está na legislação, uma vez que estamos sim, sem coordenação da política nacional de educação neste atual contexto.

Como consequência, na ausência da coordenação da política nacional de educação, tivemos um fortalecimento do discurso da “autonomia” das redes e sistemas de ensino. Talvez, na história da educação brasileira, nunca se tenha falado nesta autonomia com tanta força. Para nós que estamos no município, por vezes o peito até estufa com uma sensação de “como nós somos poderosos”. Esse discurso surgiu mais como uma “válvula de escape” sobre a ausência de coordenação deste processo, do que uma defesa real da autonomia que cada ente deve exercer. Falar em autonomia sem oferecer condições efetivas de exercê-la, apenas fragiliza mais nossa educação pública.

No entanto, o próprio § 2º do Art. 8º, diz que os “sistemas de ensino terão liberdade de organização nos termos desta Lei”. Ou seja, a “autonomia” não é plena, precisa observar todos os termos presentes na LDB, isso significa também todas as normativas derivadas deste texto legal.

No Art. 9º, inciso III, diz ainda que é responsabilidade da União “prestar assistência técnica e financeira aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios para o desenvolvimento de seus sistemas de ensino e o atendimento prioritário à escolaridade obrigatória, exercendo sua função redistributiva e supletiva”. Não vimos neste contexto da pandemia, nenhuma ação redistributiva ou supletiva para auxiliar os sistemas de ensino no planejamento e desenvolvimento de atividades remotas.

É importante destacar também, que o inciso IV também do Art. 9º, delega ainda para a União, a responsabilidade de “estabelecer, em colaboração com os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, competências e diretrizes para a educação infantil, o ensino fundamental e o ensino médio, que nortearão os currículos e seus conteúdos mínimos, de modo a assegurar formação básica comum”. No contexto de emergência, nenhuma ação da União no sentido de redimensionar em colaboração dos os demais entes federados um planejamento sobre currículos e/ou conteúdos mínimos a serem trabalhados neste contexto. Mais uma vez, reinou o discurso da “autonomia” para que cada sistema pudesse seguir o seu caminho. Esse sobre esse tópico especificamente, temos aí uma ampla atuação de fundações da iniciativa privada, ofertando facilidades na sistematização do que estão chamando de “conteúdos essenciais”. Às vezes fico aqui a pensar, onde estão as Universidades Públicas formadoras e pesquisadoras da Educação Básica neste debate? Será que apenas atrás dos seus binóculos observando a realidade e escrevendo seus artigos reflexivos para cumprimento das metas produtivas dos programas de pós-graduação? Mas, deixa para lá, apenas pensei alto.

No âmbito da responsabilidade dos Estados, a LDB traz no inciso II do Art. 10 que cabe a cada Estado, “definir, com os Municípios, formas de colaboração na oferta do ensino fundamental, as quais devem assegurar a distribuição proporcional das responsabilidades, de acordo com a população a ser atendida e os recursos financeiros disponíveis em cada uma dessas esferas do poder público”. E continua ainda no inciso III do mesmo artigo, dizendo que cabe ainda ao Estado, “elaborar e executar políticas e planos educacionais, em consonância com as diretrizes e planos nacionais de educação, integrando e coordenando as suas ações e as dos seus Municípios”. Portanto, cabe também a cada Estado, no âmbito de sua jurisdição, a coordenação das ações educacionais.

No nosso caso específico, da Bahia, também sentimos essa ausência de coordenação por parte do Estado. Talvez, a opção da rede estadual por não realizar atividades remotas para cômputo de carga horária, tenha contribuído para essa ausência de coordenação inicial do Estado no diálogo com os municípios, ainda mais levando em consideração que, segundo levantamento realizado pela Undime Bahia, mais de 76% dos municípios baianos realizaram atividades remotas em suas redes de ensino.

O tempo foi passando, estamos chegando aos 9 meses do desenvolvimento das atividades remotas, final do ano de 2020, e os municípios, sobretudo pela finalização do período de gestão administrativa, se veem agora com inúmeras dúvidas sobre como finalizar ou reorganizar esse processo de realização das atividades letivas. Com a falta de coordenação e se apegando no exercício da tal “autonomia”, inúmeros municípios se debruçaram da forma que podiam para desenvolver atividades que pudessem manter o vínculo com os estudantes e manter uma rotina de estudos que para minimizar um pouco os prejuízos da suspensão das aulas presenciais. Não há de se fazer juízo de valor sobre este digno esforços das redes municipais, no entanto, há sim ponderações e cuidados que precisamos discutir, para que não aprofundemos ainda mais as possíveis dificuldades oriundas deste período excepcional.

Sobre os municípios, a LDB diz no inciso I do Art. 11, que os municípios incumbir-se-ão de “organizar, manter e desenvolver os órgãos e instituições oficiais dos seus sistemas de ensino, integrando-os às políticas e planos educacionais da União e dos Estados”. No caso deste contexto da pandemia, não tivemos nenhum plano educacional coordenado pela União ou pelo Estado da Bahia. Como tenho dito, o discurso da “autonomia” foi a válvula de escape para educadamente dizer, cada um que se vire. E a grande maioria dos municípios se viraram dentro das suas possibilidades, mas temos agora algumas consequências desta falta de coordenação e exercício da “autonomia”:

1- Temos um quantitativo de municípios que não desenvolveram atividades remotas, e se juntam a rede estadual quando a essa situação;

2- Temos um conjunto de municípios que desenvolveram atividades remotas, e ainda sinalizaram que cumprirão para o ensino fundamental as 800 horas ainda em 2020;

3- Temos um grupo de municípios, que representa a maioria, que realizaram atividades remotas, só que dentro deste grupo, temos subgrupos de municípios que contabilizarão diferentes quantitativos de carga horária até o final de 2020.

Cada um destes três contextos apresenta desdobramentos diversos. Como ainda não temos como prever uma data de retorno para as aulas presenciais, sem dúvidas, uma alternativa que ganha força é o replanejamento das atividades letivas para o Ensino Fundamental, levando em consideração o que estabelece o § 3º do Art. 2º da Lei 14.040 de 18 de agosto de 2020, que diz que para o cumprimento dos objetivos de aprendizagem e desenvolvimento, é permitida “a integralização da carga horária mínima do ano letivo afetado pelo estado de calamidade pública referido no art. 1º desta Lei poderá ser feita no ano subsequente, inclusive por meio da adoção de um continuum de 2 (duas) séries ou anos escolares, observadas as diretrizes nacionais editadas pelo CNE, a BNCC e as normas dos respectivos sistemas de ensino”.

Esse parece ser um caminho coerente, para a grande maioria dos municípios que realizaram atividades remotas, e que não finalizarão o cumprimento da carga horária mínima de 800 horas em 2020. Desta forma, poderiam reorganizar o planejamento pensando em 1600 horas de atividades no continuum 2020/2021, aproveitando a carga horária das atividades remotas já realizadas, e planejamento as demais horas ainda com atividades remotas para iniciar o ano 2021, e assim que possível com atividades presenciais complementadas com o Ensino Híbrido.

Os municípios que não realizaram atividades remotas em 2020, precisam com urgência iniciar o planejamento para início das atividades em 2021, ainda de forma remota, e analisar como possibilidade o uso do Ensino Híbrido quando do retorno da aulas presenciais, mas, penso que será muito difícil dar conta de um planejamento para cumprir 1600 horas apenas no ano de 2021, tendo que possivelmente esse planejamento ir até um período de 2022.

Para os municípios que fecharão as 800 horas em 2020, cabe uma análise para o planejamento de 2021, se não seria importante também adotar estratégias de recuperação de aprendizagem, seja pela ampliação da carga horária com o Ensino Híbrido ou buscando outras formas, uma vez que, sabemos que mesmo tendo cumprido burocraticamente as 800 horas, em termos de processo de ensino aprendizagem, houve sem dúvidas, prejuízos.

Cabe destacar aqui, para os municípios que irão fechar as 800 horas ainda em 2020, que o próprio Parecer CNE/CP 09/2020 que é um reexame do Parecer CNE/CP 05/2020, ao abordar os direitos e objetivos de aprendizagem, diz que “cabe lembrar que a organização do calendário escolar se dá de maneira a serem alcançados os objetivos de aprendizagem propostos no currículo escolar para cada uma das séries/anos ofertados pelas instituições de ensino”. Por isso, os objetivos de aprendizagens trabalhados devem estar bem explicitados nos relatórios de finalização do ano letivo, sobretudo com o monitoramento destas aprendizagens, para que possa subsidiar o planejamento subsequente. É preciso muito cuidado, para que no ímpeto de fechar o cômputo da carga horária, não se formalize um processo que abandone estudantes que não tiveram as condições adequadas de acompanhar as atividades ofertadas. Muitos tem sido os esforços de todos que estão realizando atividades remotas, mas precisamos de uma análise mais serena sobre as condições de realização destas atividades por nossos alunos e sobre as condições de mediação que foram ofertadas entre professores e estudantes. Não podemos apenas analisar a entrega e recebimento das atividades e compreender isso como aula dada e carga horária computada, sem ter condições efetivas de mediação da aprendizagem com nossos estudantes.

No mais, é muito assumo para um texto só, uma vez que ainda temos inúmeras questões sem respostas, sobretudo quanto a movimentação dos nossos estudantes entre as redes e sistemas de ensino. Penso que uma coisa que precisa ficar clara para nós: na ausência de uma coordenação federativa, os municípios precisam começar a dialogar conjuntamente, para buscar os alinhamentos possíveis. Não há mais como ficar cada uma por si, no exercício solitário da sua “autonomia”. Mas, continuamos o diálogo no próximo texto!

Por Renê Silva;

Pedagogo, Especialista em Fundamentos Sociais e Políticos da Educação e Mestre em Educação pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia.